Verklärte Nacht | Ciclo Santa Cruz


Diz-nos Maria Filomena Molder, que na carta que Walter Benjamin escreveu a Florens Christian Rang, em 1923, há um excerto onde se lê «que a arte não salva a nossa noite, a arte ilumina a nossa noite como as estrelas, as ideias […] Iluminar, porém, não só não é despiciendo, como é indispensável.»*

Verklärte Nacht, de Miguel Leal (o título foi buscá-lo a uma das primeiras peças musicais de Arnold Schönberg, de 1899), é um trabalho de 2001 e fez parte da exposição “Atlas”, individual do artista na galeria Marta Vidal, Porto. Uma caixa de luz, reutilizando um objecto médico que servira para o seu avô radiologista ver as radiografias, é convertida em objecto artístico através da impressão fotográfica sobre película leitosa no vidro. A iluminação da caixa, por duas lâmpadas fluorescentes, é “indispensável” para observarmos a “radiografia” desta noite “transfigurada”. Ao meio, e à direita, irrompem dois clarões abertos na negra e azul escuridão (serão as luzes dos candeeiros numa estrada perdida algures? Filme de mudanças e transfigurações, não evocamos o título de Lynch em vão); à esquerda, três casas iluminadas por dentro (onde alguém dormirá: O Licht im schlafenden Haus!; onde haverá quem esteja acordado, como nós). Espaços de memória e imaginação, recantos de intimidade e refúgio, as casas longínquas e as suas luzes, são, como sugere Gaston Bachelard, em La Poétique de l’espace, “olhos abertos sobre a noite”, como se as estrelas do céu viessem habitar a terra.

E então, como num relato de Vila-Matas, poderíamos ver, sentado numa destas mesas, Walter Benjamin, que por certo teria admirado Schönberg, e, como dizia Georges Steiner, “era um connaisseur apaixonado e peregrino de cafés”, a escrever um postal, na sua caligrafia quase microscópica, a Marcel Duchamp, falando-lhe de uma boîte, outra, que, do rigoroso cálculo da luz da radioscopia incerta / como nós, “transfigurada”, passara a iluminar a nossa noite como as estrelas, as ideias, no Café Santa Cruz, em Coimbra, sob a abóbada constelada da segunda sala.

António M. Costa

*Maria Filomena Molder, O Químico e o Alquimista – Benjamin, Leitor de Baudelaire, Relógio d’Água, Lisboa, 2011.

** Em itálico, citações de Ossip Mandelstam, Rainer Maria Rilke, Gaston Bachelard, Enrique Vila-Matas, Carlos de Oliveira, Walter Benjam

 

Miguel Leal | Verklärte Nacht, 2001 | Instalação no Café Santa Cruz

Miguel Leal | Verklärte Nacht, 2001 | Instalação no Café Santa Cruz

Território e Acção

Inscreve-se este novo ciclo no programa de estratégias que se endereçam à sociedade civil, que passam por posicionar algumas das actividades do CAPC em lugares da cidade onde haja uma maior circulação demográfica; pretende-se especificamente captar a atenção daqueles que não frequentam habitualmente o CAPC ou sequer conhecem o seu papel na produção e divulgação da produção artística contemporânea e desse modo socializar a mais-valia artística e simbólica que se concretiza nos diferentes espaços do CAPC (CAPC-Sereia, CAPC-Sede). De espaço cultural expectante que aguarda os seus espectadores, os seus visitantes, de espaço de representação do campo artístico contemporâneo o CAPC assumiria um contrato social com a cidadania anónima de Coimbra, realizaria uma migração dos seus conteúdos para o círculo da Civita Augescens, isto é para o interior dinâmico de Coimbra, para a sua capacidade de recepção e acolhimento dos outros, para a cultura da plurietnicidade e da supranacionalidade que definem o esforço desta urbe em se afastar do declínio demográfico e económico.

É o CAPC a descer à cidade, inquirindo e desconcertando os cidadãos, mobilizando o quotidiano, promovendo a capacidade de recepção crítica. O ciclo geral Território e acção será constituído por quatro ciclos: Santa Cruz, Espelho, Linha defensiva do Mondego e Link.

 

Santa Cruz

No lugar do altar, na “cabeça de Cristo”, organizar-se-ão uma série de iniciativas artísticas explorando critica e reflexivamente os protocolos da representação numa sociedade ela própria profundamente iconocrata e marcada por processos de mediação distrativos, escapistas e de crescente ambiguidade semântica.

Num lugar que numa primeira fase possuía um posicionamento monossémico e prescritivo, onde se ancorava a liturgia do divino, os sons, as texturas, os odores, o impacto visual desses momentos, e que pelos percalços, inibições e ansiedades da história grande se foi acomodando a novas funções de que o Café inclusivo, plural, tertualiano de Santa cruz é a mais recente; num lugar com este “excesso de consciência histórica”, o CAPC propõe-se ensaiar um diálogo com a cidade em que vive e fá-lo através do problema artístico (o que é a arte? quando há arte?), problema que nos ùltimos cinquenta anos tem vindo a debater, a tentar clarificar mas também a indeterminar ; a atenção inquiridora, proponente do CAPC perante este problema expressa-se aqui, neste momento inicial, tanto na sua condição de experiência, de algo que é extrínseco, que é da ordem do sujeito que observa, que convive, como na sua condição de forma significante, de obra.

Esta iniciativa do CAPC agrega-se a um tema, os protocolos da representação, que persiste e apura-se no objecto artístico contemporâneo com outros desenlaces práticos.

Com efeito não são só audíveis mas actuantes na actualidade da prática artística as permutações históricas que a revolução simbólica modernista estabeleceu entre uma estética da comparação (,a dramatização narrativa do aparente, a dialéctica entre verosimilhança e artifício, entre segredo e transparência) e uma estética da comparência (do nomeado e do irrepresentável).

Ao destituir o imitatio como o único principio activo do acto de representação (de recolocação no mundo) a cultura artística do século XX, independentemente do paradigma ou periodização que se proponha, abriu para o espectador (mesmo para o mais inexperiente) novas possibilidades de negociação e de mobilização poética na sua relação com o mundo vivido. Essa Arte aproximou mesmo que residualmente o interesse humano do interesse artístico obrigando o sujeito que observa a convalescer do pathos determinista do pitoresco, do “fácil”, do “expectável”, do “semelhante”, obrigando-o para parafrasear Kant, a “audare sapare (ousar saber)”. Se conseguiu ter êxito será outra discussão.

Certo é, contudo e contraditoriamente, que quando nada é reconhecível, quando não só se prolonga o rastreio perceptivo do espectador como se desfamiliariza, se torna estranho, difícil de interpretar aquilo que se dá a ver, a Arte, (e as obras que aqui estarão expostas disso falarão), desenvolve, (aperfeiçoando, criticando, renovando os mecanismo da representação), um esforço histórico para enraizar no mesmo plano conceptual o “Nós” e o “Eles”, isto é, a correlação de forças entre um Eu (eu sou Imago, logo existo) e a diferença do Outro (a persistência de outras antropologias da identidade e da percepção e representação do mundo); a Arte treina-nos a interrogarmos o mundo fora dos nosso fins, das nossas preconcepções. E é esse esforço que aqui na cabeceira de Santa Cruz também se positiva.

Pedro Pousada e Carlos Antunes, Janeiro de 2012