4 Cidades


Inês Moura e Maura Grimaldi, Jorge Colombo, Vasco Mourão, Yonamine

Yonamine é um nativo da Luanda da Guerra dos trinta anos e um visitante/ habitante de longo curso de Lisboa, uma Luanda mais limpa como o próprio afirma, ou noutros termos uma Luanda Schengen sem tempestades épicas em torno da luta de classes. Uma Lisboa time out a merecer uma sova. O castigo da liberdade, a liberdade sem castigo, o castigo libertário,  pensamentos dirigistas quando vemos pregos. Pregos fágicos.  Escovar a história a contrapelo (against conventional wisdom) à procura  da prova do que não mudou no meio da vida estranha, estrangeira, teatral. People of Africa rise up! Aqui, no chão do Capc, aguarda-nos  uma digressão armadilhada, uma paliçada de pregos à espera de um ceifeiro;  talvez (mas só talvez) Yonamine nos proponha uma metáfora visual  sobre a psicose defensiva, eriçada dos lugares desprotegidos da cidade  metropolitana, sobre os robinsons crusoes que a povoam sem experiências  místicas mas que ainda nos podem ajudar (a desgraça é uma boa  utilidade sobretudo quando está atulhada com contas para pagar, Balzac dixit alhures; a felicidade tem um fim do mês e um mês sem fim…). A  situação espiritual da falta de tempo para consentirmos em sermos salvos,  empurra-nos para um início irreversível, tudo começará em conflito, viverá em conflito, será conflito. A norma e o erro, inconscientes,  auto-conscientes são ritmos do nosso passeio. A barbárie é uma caixa de pregos na mochila da civilização, é o seu irreprimível abismo, a  sua serpente, retemperando a qualidade do mortal, do efémero, do que  não vai haver mais, do facto piromaníaco, do facto em chamas no livro  de contas da normalidade.

Yonamine_CAPC

Yonamine | pormenor da instalação feita em Março de 2011 na sala do CAPC, 2011

 

Jorge Colombo, o incansável narrador (ou descritor?) de Nova  Iorque Todo-o-Mundo, da cidade mais lenta e avançada do mundo (Fernand  Léger), a cidade em que segundo Man Ray o espírito Dada nunca teria futuro porque era demasiado dada (ainda o é?), desembarcou as suas Ipad brushes na Paris Je t’aime/impression soleil/ minute maid. É Paris  isolada em momentos termo-digitais (de cor e de luz) e remontada num passeio anfiónico, a imagem teórica das cidades universais, como nos  propunha Guillaume Apollinaire por interposta pessoa; é o esforço de  individuação expresso no registo da condição estética do anonimato (das pessoas que passam e são, dos edifícios fotogénicos ou sem salvação);  Paris de Atget, de Bresson, de duas ou três coisas que sei dela (region parisienne), de adéle branca e seca, de Versalhes-Vichy, do leão de Denfert, do pai – acadeira onde dorme a conspiração cosmopolita internacional assim como jazem gloriosos os avós blanquistas  do bolchevismo; a Paris intranscendente dos RER, dos black mec hip-hop das cités farolando as damas no circuito Halles-Chatellet; a  Paris que nunca se desvendará e onde também “não te safas sem umas  rodas”. A Paris systéme D. Dê de desenho.

Captura de ecrã 2016-01-20, às 16.08.27

Jorge Colombo | Paris, 2010 | 3 desenhos feitos em Iphone-Art

 

A São Paulo de Inês Moura e Maura Grimaldi, Sampa, é um espelho crematório. Mãos secretas vão dobrando uma imagem e São Paulo descontextualiza-se numa migalha de luz. É como no exemplo proposto por Robert Smithson para nos falar do conceito de entropia, (a criança  brincando na caixa de areia, misturando dois tipos de areia ao  ponto em que não é possível distingui-las) o carácter irreversível  do quotidiano, do que desaparece, do que permanece como que se elucida  naquela metabolização das estratificações imobiliárias num vazio  luminoso. A cidade-estado non ducor duco exemplifica a impressionante  urbanização (e superlotação) do Brasil (em trinta anos atingiu o que levou noventa aos EUA). Mãos secretas vão mitigando um panorama  de São Paulo. Há uma poética do impacto emocional e da sua fase interpretativa (articular a emoção da cidade amada/vista pela primeira  vez, como material estético, racionalizá-la como o documento de uma  tentativa de integração numa comunidade); uma poética construída em  torno do desaparecimento cinemático da experiência vivida. É de uma  negociação entre partes de que se fala, de quem chega e se encontra  em descontinuidade, consciente do desenraizamento, do olhar incompleto  e hipnotizado que é gerado pela experiência (parcial? turística?)  da novidade, do irrepetível, de quem se coloca diante de um espaço  com vida anterior e pergunta ao outro, interroga, pede orientação,  pede que aquela esquina saia do fim do mundo.

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Inês Moura e Maura Grimaldi | Sampa, 2009 | vídeo digital cor, 00:03:42 min. em loop

 

E finalmente temos os edifícios-cidade de Vasco Mourão, minuciosos  mil folhas arquitectónicos low-tech que percorrem alguns dos equívocos  espaciais da vida intra e extra muros. São exercícios idiorritmicos  (um termo barthesiano) feitos a caneta sobre os conflitos latentes  da ideia de condicionamento: intimidade e opressão, enraizamento e  nomadismo, fetichização e desprendimento. Da cave ao sótão, do buraco escavado à tumefacção vertical ou à almofada em digressão aérea a  arquitectura presentifica-se no seu dualismo clássico: construção por  adição de partes (o vazio sério do espaço cartesiano contraposto à  acumulação cómica e descentrada de elementos) ou por extracção (aquela concavidade repleta de escada e janelas, um bairro vertical invertido  poderá ser uma encarnação em grande escala da vida intra-uterina? O  regresso ao conforto da penumbra, ao favo da colmeia?). A arquitectura  então delineada como o futuro do que ainda não aconteceu sob a aparência  daquilo que foi imaginado/vivido; ou ainda a cultura (os mores)  arquitectónica como se aproximando do futuro das suas origens através  da repetição (aqui, nesta glosa, entendida como a procura do autentico,  como a crítica do simulacro, do maneirismo e do readymade social).  O poeta modernista russo Velimir Khlebnikov, para quem a actualidade tem também que ser nostálgica (isto é, tem que reconhecer que as mensagens  do passado alcançam e são audíveis ainda com potencial heróico  no realismo incompleto do presente histórico) gostaria certamente da  estranheza visual destes ensaios onde a isotropia europeia é entrançada  no oriente otomano (da Alexandria desenhada pelos enciclopedistas  de Napoleão à Transcaucásia como maternidade da Europa). Terminemos  com Roland Barthes: O texto  (a arquitectura desenhada, aqui) é um  tecido de citações extraídas dos diferentes centros de cultura.

Captura de ecrã 2016-01-20, às 16.08.55

Vasco Mourão | Obsessão, 2010 | tinta-da-China s/ papel | 38 x 56 cm

 

 

Exposição 4 Cidades, no Círculo Sereia

Exposição 4 Cidades, no Círculo Sereia

 

Exposição 4 Cidades, no Círculo Sereia

 

Exposição 4 Cidades, no Círculo Sereia