Alea Jacta Est — Os Dados Estão Lançados


“O que está fora da vista
perturba mais a mente dos homens
do que aquilo que pode ser visto”

Caio Júlio César

 

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Niklas Luhmann, em “Sistemas Sociais”, o seu livro mais importante, demonstrou como a sociedade como um todo evolui independentemente da vontade dos sujeitos que a compõem. A teoria, um osso duro de roer para as aspirações progressistas individuais ou de classe e sobretudo humanistas, descreve como é a partir dos nexos da comunicação entre organizações e subsistemas que o todo é determinado. É a comunicação que comunica e não o sujeito. De algum modo deixamos de ter controlo sobre um enunciado a partir do momento que o proferimos. Por outro lado estamos condicionados por regras e estruturas prévias que não determinámos, para originar com os nossos actos uma comunicação. Um sistema comunicacional é assim uma parte integrante de um sistema social que é por retribuição o seu ambiente. Um subsistema é assim contribuinte para a organicidade do sistema que integra sem o compreender. O processo inaugural do processo de produção da comunicação para a formação de um sistema é a selecção. Um subsistema, por exemplo uma empresa, evolui através da selecção de conjuntos de factos que distingue entre outros que relega então para a irrelevância. Esta selecção positiva corresponde assim a uma afirmação, a um interesse perante o qual se manifestam respostas de outros subsistemas. A partir daqui através de uma simplificação, sínteses, abstracções, a comunicação adapta-se a terminais de execução, produção. Em resumo: em lado nenhum neste processo se percebe algo de humano. De todo o modo em Luhmann sentimos uma das potentes descrições da sensação psicológica de alienação. O olho fotográfico encaixa-se nesta problemática como a mais abrangente e inequívoca das formas de selecção de subsistemas perante o sistema ou ambiente que os inclui.

 

A fotografia é o meio poético-conceptual por excelência. Não será Luhmann a adaptar este medium à construção de sistema, mas sim um outro alemão: Kittler. O filósofo da técnica caracteriza as redes de discurso modernas, cada vez mais mediadas, numa situação de retirada da esfera humana para uma de autonomia. A fotografia corresponde então, numa bibliografia que já vai longa, de Benjamin, McLuhan, Flusser, Baudrillard até Crary e ao próprio Kittler, a um dos factores determinantes para a aceleração desta autonomização, na medida em que articula, em dois tempos distintos, essa separação: em primeiro lugar a fotografia é “imediata” na aderência fácil da visão a um conteúdo aparente e em segundo lugar “opaca” na medida em que a facilidade do aparente dificulta o acesso a um entendimento sobre o que existe por detrás da sua produção, ou seja, a forma de existir da fotografia enquanto dispositivo. Não é este o lugar para um desenvolvimento mais cuidado deste argumento. Indiquei-o apenas para referir que, para mim, qualquer abordagem às qualidades do trabalho de um fotógrafo, passará sempre por tentar avaliar a concepção do projecto que subjaz a um processo de selecção e a relação que este projecto terá com as questões políticas inerentes à produção de sistema, em suma, à acuidade da consciência técnica presente.

 

Os três núcleos de exposição, de cinco fotografias cada, que o Jorge das Neves apresenta no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, correspondem a duas abordagens muito diversas no que diz respeito à abordagem conceptual. Dois núcleos trabalham com memórias, o primeiro através da representação de objectos ou lugares significantes no percurso artístico e pessoal do autor, sendo o segundo o resultado de um trabalho de documentação sobre os espaços do Anozero — Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra. O terceiro núcleo de fotografias tem uma abordagem conceptual radicalmente diferente. O negativo é tomado como um material bruto, como um texto formado por uma sucessão de imagens. Aqui é o espaço entre dois momentos e lugares ou a distância semântica entre duas exposições diferentes que é seleccionada, ampliada. As exposições do negativo sucedem face a exposições de objectos em museus ou bibliotecas, sublinhando o jogo estrutural presente neste notável terceiro momento da exposição do fotógrafo natural da ilha de Moçambique.

 

Neste retorno ao trabalho artístico e às exposições, o autor parece ter tido a necessidade interior de revisitar o seu lugar de formação artística e as últimas já longínquas produções e exposições realizadas nas Caldas da Rainha. Um lugar em que foi feliz, caracterizado pela colaboração entre amigos na realização de projectos, ressurge à luz da escuridão, parcos vestígios. Os materiais e ferramentas do trabalho de então, jazem sem uso numa arrecadação, onde as gavetas adicionam um toque mórbido. A memória mais importante é evocada por duas fotografias do mesmo lugar, captadas recentemente. Estas reportam-se a um descampado onde existia um buraco, um anti-volume como referência para a realização de projectos em torno. O buraco, o negativo de um cubo (negative-cube?), com quase três metros de profundidade e tantos outros de largura, já não existe há muito, como já não se vivem actualmente as relações de então. A criação do universo, a “poeira cósmica” modelada através de um “faça-se luz” de iluminação pública marca talvez ironicamente o entusiasmo criativo desses anos do mesmo modo, e em oposição, que a festa nocturna no terreiro sem ninguém evoca talvez essa ausência irrecuperável da amizade. Marcando bem o peso deste início ao mesmo tempo que exprime bem também uma abordagem simbólica da fotografia, este núcleo parece fechar-se com uma vanitas, um crânio humano de pedra feito pelo fotógrafo envolto numa escuridão semelhante à das fotografias anteriores.

 

O segundo grupo de fotografias, ao contrário do primeiro, evoca uma memória não pessoal. É também o núcleo menos surpreendente na medida em que segue uma das linhas mais frequentes do trabalho artístico documental, ou seja, a reportagem a lugares e ao passado dado pelas marcas presentes nesses espaços. De um trabalho de levantamento fotográfico foram então seleccionados alguns negativos. Relacionados com o primeiro e escuro grupo de fotografias, particularmente com a fotografia do crânio, Jorge das Neves traz-nos detritos e os restos de uma maquete de arquitectura. Uma ruína, portanto; uma inevitabilidade. As três restantes fotografias representam, ao contrário das primeiras, um interior inundado de luz. Destas, a mais impressionante, manifestando um forte formalismo na composição, apresenta um cortinado de hospital ainda na sua calha (porque funcionava neste espaço anteriormente um centro de saúde), que serviria para ocultar dos olhares exteriores as misérias do corpo. Nada porém nesta fotografia oculta, passados anos sobre a cessação da função desta guarda da privacidade. Nada neste espaço há a ocultar. A cortina dobrada sublinha e anuncia porém, e de modo inquietante, todos os sofrimentos potenciais do corpo, bastando para isso desdobrar-se, caindo sobre si e voltando a encerrar visualmente o lugar.

 

O último núcleo de cinco fotografias é em respeito ao argumento que apresentei no início deste texto o mais surpreendente e, fechando a exposição, confere-lhe uma certa vocação de antologia. Como referi, se os dois primeiros núcleos representam uma abordagem da fotografia como meio, o primeiro num tom confessional, o segundo num tom mais social, este terceiro núcleo apresenta o próprio meio fotográfico como parte integrante da representação. É apenas neste terceiro momento onde a fotografia subitamente se transforma num objecto indiciando uma relação com o espaço e com o corpo, sem ser apenas com o olhar. Perante estes objectos fotográficos deixamos de ler em profundidade mas sim estabelecendo relações à superfície, como numa página. A selecção do negativo é claramente um investimento de arte conceptual, reflectindo uma abstracção da história da fotografia ao mesmo tempo que recupera a formação de escultura, a tradição do ready-made característica de outras produções que não a fotográfica. Espaços de representação confrontam-se com espaços de representação: bibliotecas com museus, arte clássica com expressões diversas, o museu de história natural com o vandalismo, isto ou o contrário. A fotografia desenquadra-se e fala já de cinema, do corte e da montagem. O processo de selecção deixa de ser puramente visual e afectivo, como no primeiro e segundo grupo de fotografias, para ser intelectual, arquitectónico sem se perder no entanto uma sensibilidade poética em cada momento de selecção. É uma abordagem ainda algo formal, mas que abre uma clareira moderna para a dessacralização do médium, como rasgar um cenário para devolver ao público a maquinaria de cena, a fantasmicidade de que o cinema se socorre para provocar o espanto. É, concluindo, com o início de algo importante a perseguir no futuro e para além mesmo deste moderno que se conclui. É com um revisitar também das possibilidades e impossibilidades de passados (porque o Jorge das Neves não tem sido nem é apenas fotógrafo) que se conclui esta mostra de grandes ampliações, apenas um momento de uma obra sobre a matéria da fotografia, para além da fotografia.

 Gonçalo Pena