Anozero’21–22, Meia-Noite parte 1


Curadoria de Elfi Turpin & Filipa Oliveira

Este é um início, uma aproximação. Um arranque que abre vários caminhos para o Anozero’21–22. Aqui, são apresentadas algumas das bases que sustentam a proposta para a Bienal. Apresentadas, conversadas e discutidas, porque estes são alguns dos seus princípios-fundadores: a discussão, a abertura, a participação.

Na primeira parte da Meia-Noite apresenta-se uma exposição-conversa. Numa instalação concebida especificamente para a Sala da Cidade por Carlos Bunga, serão apresentados quatro filmes: La Cabeza Mató a Todos, de Beatriz Santiago Muñoz; Les Mains Négatives, de Marguerite Duras; À Bissau, Le Carnaval, de Sarah Maldoror; e Shadow-Machine, de Elise Florenty & Marcel Türkowsky — todos indiciando temas centrais no pensamento e construção da Bienal.

A instalação de Carlos Bunga, para a qual o artista convocou um grupo de dez esculturas Angolanas da Coleção do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, irá transformar-se temporariamente numa sala de projeção e de conversas onde diferentes grupos da comunidade são convidados a visionar os filmes e, a partir deles, iniciar conversas sobre a diversidade, igualdade, justiça social, produção de conhecimento, relações poéticas entre espécies e seres, e sobre a noite como um espaço de resistência.

O primeiro momento da Bienal pensa na arte como um lugar inclusivo, um bem comum, uma ferramenta de confronto com a realidade, um espaço onde se escreve uma história coletiva sob inúmeros pontos de vista. Esta exposição é, acima de tudo, uma chamada à participação. Um projeto de envolvimento, discussão e participação comunitária que questiona o formato tradicional de exposição e sugere novas formas de relacionar a arte com o seu público. E que propõe uma Bienal profundamente enraizada na sua comunidade, para a qual diferentes públicos e diferentes agentes serão envolvidos desde o início do seu pensamento e construção.


Descolonizar o Pensamento, 2013–2021
Carlos Bunga (Portugal, 1976)

Há vários anos que Carlos Bunga tem vindo a criar estruturas monumentais de cartão. Fascina-lhe o contraste entre a fragilidade inerente deste material e a estabilidade estrutural que viabiliza as suas esculturas. O cartão permite dotar as suas obras de uma dimensão arquitetónica, e paradoxalmente aproximá-las de uma iminente ruína. A banalidade destas caixas de cartão fala de uma pobreza e de um abandono, e a sua delicadeza aponta para a possibilidade constante da perda. Bunga chega a falar das suas obras como um espelho da sua/nossa própria mortalidade. Assim, a monumentalidade que aparentam é sustentada na antevisão da destruição e consequente luto. As suas esculturas refletem na temporalidade, na fragmentação. Enquanto ruína, evocam memórias; enquanto arquitetura, projetam o futuro.

Pela primeira vez no seu trabalho, Carlos Bunga assume uma dimensão autobiográfica. Fá-lo ao convocar para o interior da obra um conjunto de dez esculturas angolanas pertencentes à coleção do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Elas emergem de uma estrutura em grelha aparentemente regular, um símbolo da modernidade. A mesma modernidade que exotizou as esculturas tradicionais africanas, que exotizou o outro. É sobre os seus escombros que se levantam as esculturas, como um desejo de rescrever e descolonizar a história, o presente, e especialmente o pensamento.


Les Mains Négatives, 1978
Marguerite Duras

Les Mains Négatives resulta de material fílmico não utilizado na montagem da longa-metragem Le navire Night (1979) e reaproveitado num conjunto de pequenas curtas como esta, ou Césarée, do mesmo ano. Les Mains Négatives é um plano-sequência de uma viagem de carro entre a Bastilha e os Campos Elísios, em Paris, desde o anoitecer até ao amanhecer. Sobreposta a esta deambulação urbana, ouve-se a voz da própria Duras a ler um texto seu que fala exatamente das mãos negativas, nome atribuído às pinturas rupestres do contorno das mãos e para as quais ainda não foi encontrada nenhuma explicação.

O filme convida o espectador a um passeio noturno pelas ruas de Paris, ao mesmo tempo que viaja nos mistérios da história. Aparentemente desconectadas, estas duas dimensões — texto e imagem — parecem falar de um corpo ausente, invisível, que constrói a cidade e a história. Corpos como os que limpam, que preparam a vida diária: os varredores de ruas, os padeiros, as empregadas domésticas… Corpos que, quase como morcegos, desaparecem da vista quando a luz do sol irradia. O filme é uma ode ao anonimato. «E ele gritou/Tu que tens um nome e uma identidade eu/te amo», escreve Duras.


Shadow-Machine, 2016
Elise Florenty & Marcel Türkowsky

Baseado na extensa pesquisa dos artistas sobre experiências japonesas no domínio da comunicação entre humanos e outros que não humanos, o filme Shadow-Machine revela uma constelação de personagens — plantas, animais, fenómenos e máquinas isoladas no meio de uma conspiração de uma noite de verão — que transmitem a sensação de estarem estranhamente interconectadas, como se guiadas pela mesma força coletiva e ameaçadora. Várias pessoas se encontram presas num jogo de sombras e luzes. Corpos vestidos de preto parecem manipular estas personagens à medida que elas se entregam à ideia de serem fantoches. No entanto, aqui não há ventriloquismo. Só algumas lágrimas, ou um riso escondido atrás de um grito, rasgam o silêncio da noite. Reminiscente do teatro Bunraku — uma forma de teatro japonês cujos grandes fantoches são manipulados à vista do público por bonecreiros vestidos de preto —, o filme é ao mesmo tempo indutor de ansiedade e libertador na forma como evoca a relação de dominação entre autor e atores.


La Cabeza Mató a Todos, 2014
Beatriz Santiago Muñoz

Em La Cabeza Mató a Todos, Beatriz Santiago Muñoz descreve um feitiço, as instruções para destruir a máquina de guerra, um ritual realizado à noite por Mapenzi Chibale Nonó, um gato e uma câmara. «O ritual», diz Beatriz, «partilha com a arte a possibilidade de múltiplas posições a partir das quais podemos perceber a experiência. No ritual, esta multiplicidade é evidente. […] Quando olhamos para a prática artística através das lentes do ritual, podemos abri-la a posições para lá do espectador. E a transformação do sujeito, a poiesis, os estados hipersensoriais que permitem avanços de pensamento? No ritual, podemos ser especialistas lúcidos, loucos visionários, crianças, mestres de objetos e formas ou pessoas possuídas. […] Se, por exemplo, falamos do filme como ritual, da câmara como objeto ritual, do tempo e do espaço de fazer o filme como tempo e espaço do ritual, e dos processos da arte como processos que transformam a perceção e a consciência – tal como o ritual –, para onde poderemos redirecionar a nossa atenção?»


À Bissau, Le Carnaval, 1929
Sarah Maldoror

Pioneira do Cinema Pan-Africano, Sarah Maldoror é uma das vozes centrais da cinematografia, do movimento anticolonial e da Negritude. Em À Bissau, Le Carnaval, Maldoror mostra as celebrações do Carnaval nos bairros de Bissau poucos anos após a libertação do país da colonização portuguesa. Se esta festa é inicialmente expressão cultural canónica europeia, introduzida e imposta pelos Portugueses em África, ela é depois apropriada pelas diferentes culturas locais e transformada em manifestação de resistência, exatamente contra a emancipação do poder colonial. «Foi a capacidade de resistência cultural do nosso povo que nos deu a força necessária para conduzir a resistência política e militar […] traduzindo o Carnaval no espírito do nosso povo», afirma no filme Luís Cabral, Presidente do Conselho de Estado na época.

O Carnaval passa a ser considerado como um espaço de construção de uma nova identidade nacional, uma celebração da independência. Maldoror realizou também um filme acerca do Carnaval em Cabo Verde, intitulado Un Carnaval dans le Sahel (1979), revelando esta celebração como símbolo de um projeto de emancipação coletiva, e encarada como elemento essencial na defesa da cultura negra transnacional, porque se encontra presente em diversas culturas do Atlântico Negro.


Mais informações em 21-22.anozero-bienaldecoimbra.pt
@anozerocoimbra