Our backyard
Brinquedos numa casa em Coimbra
1.
Habitação é sinónimo de habitar – viver e ser num espaço em que nos abriga. A ARTE É TAMBÉM UMA HABITAÇÃO PARA O ARTISTA, o espaço preciso que esse habita e onde é.
O espaço da habitação evoluiu ao longo do tempo e, paralelamente, à história da arte. Desde logo complexificando-se, mediante compartimentação e especialização do interior.
A sua multiplicação e associação deu também lugar aos aglomerados urbanos, lugar onde a civilização se desenvolveu em grande medida. A cidades definiram-se por oposição ao exterior natural, num aglomerado de espaços construídos e livres, incluindo espaços exteriores mas diretamente associados à casa e muitas vezes vividos pelos seus habitantes.
Bachelar fala-nos da “poética da casa”, na forma como as nossas memórias das casas que habitamos nos marcam.
Vidler por seu lado recorda-nos como a expressão “uncanny” de Freud, remete para uma sensação mista de familiaridade e temor. Por exemplo, quando nos encontramos DEFRONTE Á NOSSA CASA DE INFÂNCIA JÁ NÃO HABITADA. Como se naquele espaço, de pequena escala, já não pudéssemos albergar a nossa intimidade. Uma inversão do “sublime” que atraiu muitos pensadores, o que se pode ilustrar como a sensação sentida quando sozinhos perante a imensidade de certas paisagens.
A casa é símbolo do privado e da vida privada. “Domus” por oposição á “urbe”, ou melhor à “civitas” – o lugar público.
2.
A casa é, para a criança, um mundo, onde se reconhece e aos seus. Um espaço imenso que apropria e onde desenvolve as suas actividades e faculdades.
Sem nos retermos nas fases de desenvolvimento da criança – do recém-nascido à puberdade – tudo conleva a tal.
Entre que as várias atividades, estão as primárias de comer, dormir e brincar. “Brincar” é anterior à conceptualização e linguagem, símbolo do humano racional maduro. BRINCAR NÃO SE RESTRINGE À CRIANÇA, e pode protelar-se na forma como jogamos a sociabilidade – por excelência no espaço público. Mas também no espaço privado, o qual está repleto de protocolos, individuais ou emanados do exterior social. E a família é esse mais pequeno núcleo social.
Ao brincar, a criança lida e aprende a relacionar-se com o mundo. Tudo se inicia no restrito espaço do berço, com movimento de olhos, até a movimentações ocorridas com o desenvolvimento motor e, progressivamente, com a manipulação de objectos que subvertem o espaço.
O pequeno mundo estende-se, por vezes aos espaços contíguos do exterior. Ás denominadas traseiras – o “backyard” da habitação torna-se para quem dele usufrui um local mágico onde tudo pode acontecer.
3.
Não nos parece desoportuno estabelecer uma relação entre o espaço que alberga a presente exposição e a história dos espaços da arte.
Como sabido, a arte foi uma das formas primitivas de ordenar o “caos” do mundo. Progressivamente, tornou-se algo específico e distante do quotidiano do mortal. Entregue a uma suposta “genialidade” do artista romântico, a arte percorreu um percurso de exclusividade.
O museu e as galerias tornaram-se nos espaços de exposição da arte por excelência. Distantes e sobretudo congelados na sua própria temporalidade.
Bidimensionalmente pendurando arte em paredes e tridimensionalmente assentando-a em pedestais. Seria preciso o século XX para TRAZER A ARTE PARA A VIDA E FAZER DA VIDA ARTE.
A meio do século houve um questionar dos espaços convencionais da arte. O “pop” apropriou o banal quotidiano, a instalação e performance apelaram a que a vivamos, e o “ready-made” e o “conceptual” sofisticaram as relações estabelecidas com a arte. Os “ateliers”, e depois a rua, tornam-se lugares propícios ao albergue da arte e seus desenvolvimentos. O espaço privado, e a casa em particular, tornaram-se também em espaços de arte, espaços que o artista abre ou apropria para uma qualquer manifestação artística. Manifestações igualmente dignas e, eventualmente, mais genuínas.
O espaço desta exposição entende-se nesta história dos espaços expositivos.
4.
Por outro lado, os objetos escultóricos também expandiram o seu “campo”. Não no sentido de Krauss, num caminho que passa pela “Land-art”, mas no sentido da sua própria materialidade. Construídos com uma materialidade pré-existente, recontextualizada, adquiriram uma nova significação.
No presente caso – objectos escultóricos feitos de brinquedos – a referida reutilização adquire uma profundidade signica ainda maior.
Um brinquedo é um objecto único, que acompanha a criança NO INFINITO QUE É TEMPO DE UMA BRINCADEIRA. Encarna o imaginário denso que as crianças sonharam. Neste sentido, estes objectos escultóricos podem incluso nos parecer traumáticos – se entendidos enquanto perda de tal.
Mas, por outro lado, tornados arte, entronizam o sonho dessas crianças em qualquer espectador. Dignificam o “brincar” e a criança na dimensão partilhável que é a “arte”.
5.
As esculturas “Toys Re Re-play”, agora mostrada num espaço mais convencional, ganham com esta re-situação numa habitação, um contexto ainda mais própicio ao seu usufruto e experiência estética. Os visitantes, mais que espectadores, podem expandir a sua imaginação à sua infância passada ou ao limite do sonho.
Remetemos também anteriormente para a relação entre o brincar e a linguagem. No presente caso, a associação da escrita criativa com a escultura é demais oportuna. Uma escrita que NÃO PRETENDE EXPLICAR A ARTE, MAS ANTES EXPANDE A SUA SIGNIFICAÇÃO, circunscrevendo o espaço do sonho. É decididamente uma associação feliz.
A experiência estética proposta é ainda alargado por outras linguagens, e o seu previsto registo em livro, mais não poderá ambicionar ser do que isso mesmo – um mero “arquivo”.
6.
Nos últimos tempos, tenho acompanhado o trabalho desenvolvido por António Azenha.
“Our Backyard” é um resultado coerente e consistente desse percurso. A sua exposição no âmbito da representatividade do CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra) mas, em particular, nesta habitação que alberga a instituição na cidade de Coimbra, é uma escolha feliz. Incentiva-nos a viver a arte na sua magnânima expressão, a sonhar e imaginar. E essa é uma das funções mais intrínsecas de uma arte que tenha sentido num momento pautado pelas indecisões contemporâneas e alegada crise mundial.
Estamos perante uma manifestação artística em intimidade doméstica, mas que não deixa de apelar a uma reflexão sobre o “sublime” público sobre a POSSIBILIDADE DE ACÇÃO POLÍTICA DA ARTE, NOS SEUS ESTRITOS LIMITES. E mesmo aos domingos.
Gonçalo Furtado – Coimbra, Maio 2013