As Cátedras de S. Pedro | Ciclo Espelho
As Cátedras de S. Pedro
Estas telas foram pela primeira e ultima vezes apresentadas na exposição “Na Cátedra de S. Pedro” em 2010, no Museu Grão Vasco, em Viseu, desdobrando a ideia de cadeira, conceptual e visualmente, tendo como ponto de partida uma das obras mais importantes de Grão Vasco. E evocação do contexto académico, numa personagem envergando um traje talar que, estando de pé sobre uma cadeira, a sua cabeça já não cabe na tela. Uma cadeira como disciplina académica, lugar de partilha de saber, nas potencialidades plásticas do pensamento, mas, sobretudo, como materialização de um lugar, de um lugar tornado objecto, mas um lugar humanizado.
Nos anos 60, Bruce Nauman fez o molde do espaço sob a sua cadeira, materializando-o em cimento. Agora, aqui, talvez se trate sobretudo do espaço que cada cadeira gera na vertical, na ideia de um espaço sem antecipação de limite, mas um espaço topograficamente delimitado, pertença de cada um, na assunção de que cada um de nós terá a sua própria cadeira, como uma espécie de lote unipessoal, sem tecto.
No contexto deste Ciclo Espelho estas telas vêem sublinhado, desde logo, o seu sentido especular. Cadeiras que se reflectem nas sombras. Sombras que se autonomizam, reclamando protagonismo. Na plasticidade das formas que as sombras assumem, estas reclamam ser a causa das cadeiras e não a consequência.
Especulação no sentido dos conceitos que se desdobram quando nos interrogamos sobre eles. Se dobram sobre si próprios, tomam consciência de si, mas transformam-se ao confirmar-se. Nestas cátedras de S. Pedro, a especulação faz-nos pensar nas formas e seus arquétipos. O arquétipo cadeira insinua-se aqui como assombração, nas possibilidades que a pintura permite, na relação entre os objectos e as suas sombras.
António Olaio, Janeiro de 2014
Ciclo Espelho
A história de Santa Clara a velha, é a migração de um corpus arquitectónico por diferentes condições de existência, diferentes actualidades: refúgio, casa e teatro de um mundo, estábulo, ruína, imagem, paisagem, monumento, tesouro arqueológico e finalmente laboratório e espaço museológico onde se mediatiza. Santa Clara é de facto um espaço definido pela pluralidade e descontinuidade dos seus fins.
O Mosteiro de Santa Clara ganhou o seu baptismo geriátrico (a velha) por incapacidade avançada; a função desprendeu-se da forma arquitectónica no último quartel do século XVII. E a liturgia deu lugar à pecuária.
Originalmente destinada às Penélopes beirãs, às proprietárias fundiárias (a parte feminina do cume da ordem social vigente) que recusavam um dono e que queriam decidir a economia dos seus bens, Santa Clara, a casa coimbrã das Damas Pobres, construiu-se como uma barreira arquitectónica contra a penetração forçada, contra a brutalidade testamentária do pecado original.
No uso deste edifício como no de tantos outros espaços conventuais, no regulamento do seu quotidiano intramuros, a consciência háptica do humano, a agonia dos limites e das necessidades (a comida, os perfumes, os cheiros, os sons, as febres, o desconforto do corpo em mudança, a menstruação, a fertilidade, a textura da experiência, os breviários, os excessos e as proibições carnais, as missas, a probidade, o egoísmo, o deve e o haver dos segredos pessoais e colectivos, a contabilidade das inúmeras rendas e doações, as obras, os olhares trocados, o ócio) e a renúncia dessa mesma condição humana, a busca de um dever ser mais que natural, a busca do sagrado (o transcendente, a incompletude do presente, o bem que faz o mal e o mal que faz o bem, o sacrifício, a paixão, a luta contra a repetição) foram mutuamente inclusivos.
Nas margens de um rio que os romanos chamavam Munda, claridade, ergueu-se nos finais do séc. XIII um refúgio contra o animalesco, a natureza, o inimigo; a clausura constituiu-se como um prolongamento de vida, como uma moeda de troca exigida pela protecção contra a intrusão androcêntrica, contra o matrimónio coercivo. A viúva de um soberano dedicou-lhe uma nova Igreja e um hospital. Mas esse rio, filho de uma cordilheira glaciar, existia nos interstícios do terreno, nas cavidades subterrâneas e disputando a solidez do terreno fez o mosteiro das Clarissas coimbrãs adquirir um horizonte lagunar. O claustro, as naves do templo, foram imergindo nas cheias do Mondego e o pequeno reino das Damas Pobres foi recalcitrando em diferentes pisos até ao seu abandono. O refúgio, a estética do lugar vivido, a policromia dos azulejos, a cantaria aprofundada por mãos inteligentes, as colunas, as abóbodas de berço, cederam o lugar à ruína, ao esquecimento, ao espaço alienado pelo tempo. O refúgio tornou-se a pictura de uma inutilidade, a representação de algo que já não podia ser, o emblema da decadência de todas as obras humanas mesmo das bem-intencionadas. A ruína improdutiva, insalubre, reumática tornou-se no séc. XX um tesouro de um certo tipo de vida humana, o vestígio físico de uma organização pré-burguesa e pré-industrial do espaço comunitário.
Na fase final do séc. XX, praticamente trezentos anos depois do seu abandono, o mosteiro adquire um novo estado cinético, uma nova exterioridade e uma nova subjectividade que o recoloca no mundo como objecto vivo: o Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara a Velha.
No desenho deste novo edifício inscrevem-se muitos elementos da investigação modernista: a evolução criadora do essencialismo geométrico que não mimetiza, que não ilustra mas que ao mesmo tempo consegue estabelecer uma relação narrativa com o lugar, a clareza funcional das partes, a fenomenologia do corpo que sai entrando, que toma consciência da reversibilidade entre o interior construído e o exterior contemplado, vivido. Uma nave longitudinal segmentada, com vastas fenestrações que acentuam a fluidez e não o sólido, o visível e não o escondido como propagação do real no espaço arquitectónico. Dois corpos (ruina+ monumento), (casa+ museu) enfrentam-se e completam-se (ou desfixam-se). O tempo é reconhecível por aquilo que define as diferenças entre estes dois pontos e no fluxo produzido pelo movimento entre essas categorias arquitectónicas o espaço supera a sua condição de veículo, de objecto e “mistura-se com o mundo”.
A motivação temática para a exposição que agora o CAPC organiza neste espaço sob o título de “Espelho” foi a condição inusitada de Santa Clara ter durante três séculos convivido com o seu simétrico reflectido nas margens do Mondego.
O estranhamento perceptivo com que se encarava a presença desta realidade ainda perdura na memória deste espaço. Essa relação entre o objecto e a representação invertida da sua exterioridade, a arquitectura “vendo e sendo vista a existir”, revitalizou contraditoriamente a matéria construída como uma anamnese liquida, expectante, como o espaço de uma vida anterior, terminada cujo duplo “afogado”, como “um salão no fundo de um lago”, era também a marca do incompleto e a invocação de um regresso.
A forma arquitectónica existiu duplamente como congelamento de um metabolismo antropológico—Santa Clara, a ruína, ganhara um carácter indexical, recordando a organização do isolamento comunitário, a hierarquização do espaço humanizado- e como auto-representação na superfície lacustre. O CAPC não podia deixar de revisitar o potencial de ambiguidade associado com esta experiência.
Pedro Pousada, Janeiro de 2012