ar/mão


ar mão [Cartaz]

 

ar/mão

Até ao momento em que Johann Winckelmann fundou a versão moderna da História da Arte, em meados do século XVIII, o discurso produzido em torno dos objectos artísticos estava intimamente ligado à vida dos seus autores. A tradição fora tornada célebre por Vasari, cujos escritos se apoiavam nos acidentes biográficos dos artistas para organizar e justificar todo o edifício analítico. O problema de Winckelmann com este modelo reflectia a nova ideologia da época das luzes e os objectivos que a revolução científica então concretizava: os objectos de conhecimento deviam dispensar toda a abordagem conjectural (como era o caso do método biográfico) para passarem a ser tratados na base da evidência e da distância crítica. No caso concreto da História da Arte, tal movimento levou Winckelmann a estabelecer novos parâmetros para a disciplina e a baseá-los numa rigorosa observação da origem, do desenvolvimento e do declínio dos fenómenos artísticos. As obras de arte autonomizavam-se, então, dos seus autores e ganhavam uma biografia própria, baseada nas mesmas três idades, nos mesmos três fôlegos: «as artes…, como todas as invenções, têm a sua origem numa necessidade; de seguida procura-se a beleza e, finalmente, instala-se o supérfluo: estes são os três estádios da arte.»[1]

A peculiaridade dos objectos que Laurindo Marta agora apresenta no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra encontra-se no modo arguto como fundem em si estes três estádios. É como se, perante a clara consciência da artificialidade da regra de Winckelmann – perante, mesmo, a impossibilidade de continuar a pensar os fenómenos artísticos nesses termos –, a sua prática se tivesse concentrado, não propriamente em desmontá-la, mas em fazê-la implodir. E assim, encontramos aqui uma exposição repleta de objectos, ou melhor, uma exposição repleta de máquinas cuja utilidade é tão evidente quanto o esforço que o artista levou a cabo para a anular. Senão, vejamos: o avião de Razão de Subida (2016), a guitarra de Solo (2016), o carro de Andamento (2016) e a bomba de água de Primeiro Poço (2016), todos funcionam. Todos respondem perfeitamente às necessidades que lhes deram origem. Contudo, enquanto máquinas, enquanto aparatos de trabalho, eles não produzem nada de expectável. Pelo contrário, todos eles foram manietados por intermédio de artifícios cujo propósito foi, claramente, o de lhes cercear o carácter produtivo. De certa forma, eles foram postos em situações em que nem param de trabalhar, nem o seu trabalho conduz a nada que não seja a (re)produção de si mesmos – isto é, do trabalho – enquanto imagem. Um avião que nem pára de voar, nem sai do mesmo sítio, uma bomba de água que enche ininterruptamente uma tina rasa que nunca chega a transbordar, um carro cuja perpétua circulação não faz mais do que registar a sua própria circularidade – todos eles se cristalizam na sua repetição, forçando o mesmo jogo de abstracção hipnótica de onde vem o poder do loop ou do mantra.

Como Sísifo, estes objectos foram condenados pelo artista a repetir as suas funções sem cessar e sem produzir resultados. Como Sísifo, eles persistem e resistem no espectáculo da sua inoperatividade. Como uma divindade omnipotente, o artista condenou-os a essa condição, não porque por eles se sentiu ameaçado, mas porque os conhece demasiado bem, porque a sua relação com o mundo material vem imbuída de uma curiosidade irreprimível sobre a mecânica das coisas, sobre a sua natureza. Esse impulso paracientífico de Laurindo Marta fica mais explícito nos títulos de peças como Sobre a Relação entre o Tamanho dos Círculos e a Velocidade (2016) ou Sobre a Flexibilidade dos Cabos de Madeira (2017), expressões de cariz manifestamente descritivo e analítico, mas que sofreram, também elas, uma perversão de sentido que as transforma em máquinas de dizer «nada». Não porque nada digam, mas porque «nada» é tudo o que se pode dizer sobre a flexibilidade dos cabos de madeira ou sobre a relação entre o tamanho dos círculos e a velocidade. Como máquinas alusivas e tautológicas, estes títulos dirigem-se aos objectos que nomeiam, amplificando o seu carácter absurdo, a sua desconcertante natureza e a sua vacuidade.

A exposição termina precisamente nesta tónica da vacuidade. Mesa Vaga oferece-nos um conjunto de objectos marcados por uma estranha familiaridade. Pressentimos as suas presenças algures na nossa vida, no nosso quotidiano, mas o lugar exacto que ocupam na grande taxonomia dos utensílios vernaculares não nos é perfeitamente localizável. Ao contrário dos anteriores, nenhum deles funciona. Estão inertes sobre a mesa, como se nos fitassem, partilhando de um mesmo silêncio e de uma mesma potência. E dizemos potência porque, mesmo se tratando de estruturas elementares, estas peças sugerem uma possível função, uma utilidade hipotética que não só está por apurar, como implicaria inevitavelmente uma interacção com outros elementos.

As peças que compõem Mesa Vaga são o contraponto inerte e elementar dos objectos compostos e cinéticos que os precedem no percurso expositivo. Não obstante, todos eles partilham entre si uma postura resiliente, cultivam uma certa dignidade na sua inoperância e, em última instância, na sua condição supérflua. Já se sabe que essa inoperância, essa sua inscrição fora dos circuitos produtivos, os transforma imediatamente em candidatos a objectos de contemplação e, por inerência, em candidatos a obras de arte. Contudo, e pese embora a sua qualidade visual, apropriada do mundo dos produtos industriais (na verdade, a maioria destes objectos são da ordem do readymade assistido), o que os torna verdadeiramente apelativos enquanto objectos simbólicos é, simultaneamente, o choque que, por via dessa apropriação, provocam com o lado funcional da vida quotidiana, e a equidistância que mantêm em relação às três idades que Winkelmann proclamou para todas as invenções. Nem propriamente necessários, nem exclusivamente belos, nem taxativamente supérfluos, os objectos de Laurindo Marta habitam uma dimensão singular, indiciam uma cosmogonia eximida do peso de um qualquer discurso que a estruture, de uma norma que a organize, e mesmo de um sentido que a justifique.

 

Bruno Marchand


[1] Johann Winckelmann citado em Hans Robert Jauss, Toward an Aesthetic of Reception, Minneapolis: The University of Minnesota Press, 1982, p. 48. (Tradução nossa.)