Até que o fim rime e a corda estique
Figuras do contínuo
Durante quinze anos, Filipe Feijão construiu uma estrutura proto-museológica — seguramente, um dos projectos utópicos e visionários mais extraordinários realizados nas últimas décadas em Portugal — que, na prática, funcionou como extensão do seu ateliê das Caldas da Rainha.
Parente ou herdeira de várias estruturas mais ou menos bem conhecidas que alguns artistas foram construindo desde o início do século XX (pensemos no Merzbau de Schwitters, por exemplo), esta peça de grande envergadura tornou-se no habitat de um extenso e variado conjunto de coisas estranhas em si e umas às outras — plantas, cactos, fósseis, organismos vivos, ossos de baleia, cerâmicas, vigas de madeira e outros objectos.
Não é tanto para os gabinetes de curiosidade ou para as câmaras de maravilhamento que remete esta singular e monumental peça. Dir-se-ia que se trata de uma estrutura que foi pensada e construída para poder acolher um pensamento e uma prática alargada da escultura. É, portanto, uma estrutura propiciatória, uma espécie de máquina desejante aberta à multiplicidade e que, em rigor, tematiza a diversidade como último reduto do pensamento escultórico, irredutível à sujeição da forma.
É, por isso mesmo, enigmática a peça que escolheu mostrar no CAPC. É feita a partir da transposição material de um fragmento que jazia na estrutura, cujo aparato físico parece em tudo remeter para a linguagem do neoclassicismo — o hieratismo da forma, a aparência de ruína, o antropomorfismo da pose (como se se tratasse de uma visão de Marat na sua banheira-túmulo). É, contudo, aparente essa filiação; trata-se, ao contrário, de uma visão orgânica, de uma figura do contínuo.
Com efeito, todo o trabalho de Filipe Feijão se tem desenvolvido em torno da possibilidade de pensar a escultura como trânsito entre este e o outro mundo, uma das mais velhas questões com que os escultores se debatem desde sempre: como conciliar corpo e matéria, vida e morte, negativo e positivo, forma e sopro.
Nuno Faria
O autor não segue a grafia do recente Acordo Ortográfico.
«Le corps est le point zéro du monde, là où les chemins et les espaces viennent se croiser le corps n’est nulle part: il est au coeur du monde ce petit noyau utopique à partir duquel je rêve, je parle, j’avance, j’imagine, je perçois les choses en leur place et je les nie aussi par le pouvoir indéfini des utopies que j’imagine.»
Michel Foucault
Le Corps Utopiqe, 1966
No universo-mundo da hegemonia dos dualismos, debruçamo-nos num em particular — o corpo/espaço.
Não somente é questionado e reflectido, como também é alvo de novas, velhas e potencialmente controvertíveis asserções.
Implica desde já esclarecer que a torrente de vocábulos que perfilarão neste texto literário, como «corpo» e «espaço», prende-se com a necessidade e a inevitabilidade, e existe à margem dum qualquer estilo.
Partindo da dicotomia corpo/espaço, propomos partições, apresentamos como primeiro corpo o eu-criador que extravasa o corpóreo e a matéria, o sujeito fecundo que emite e alberga em si a aptitude de existir e propagar existência, o corpo como sendo sensível e motivado pela emissão de sinais, fenómenos e ideias. O segundo corpo será, portanto, o próprio «espaço», esse espaço abrangente onde coabita o físico e o cognitivo, onde num sentido intimamente lato se unem harmoniosamente a realidade e a virtualidade. Uma construção concreta e abstracta onde o usufruidor possa sentir os corpos. No curso da partição prometida, elegemos um terceiro corpo, que perpassa a ideia de corpo e espaço. Um corpo que circunvaga, que logra — dentro do matrimónio entre a corporalidade e a espacialidade — figurar, como um amante intrometido e pueril quanto baste, numa rasante por consistências tricotómicas que procuramos diagnosticar.
Importa notar que, nesta discorrência sobre três corpos, mais se poderiam juntar, quer «alineados» em subdivisões, quer em ramificações de maior ou menor plausibilidade. No entanto, estas são as partições que interessam ao propósito destas alocuções, um leve palmilhar sobre o entrecho dos processos na obra de arte até à «consagração» como objecto de arte em espaço expositivo.
Breves e especulativas notas acerca dos «três corpos» e as relações com o trabalho de Vasco Costa.
1.
A partir de Henri Bergson, em Matière et mémoire, perspectivamos o primeiro corpo como um objecto destinado a mover outros objectos, tornando-se num centro de acção com a capacidade de exercer uma genuína e, por conseguinte, uma «nova acção» sobre os objectos envolventes.
Vasco Costa não só exerce e move pressões sobre os objectos como tira partido do seu próprio corpo para precingir a sua relação com eles. Não o faz usando literalmente o corpo per se, mas envolve-se numa batalha exaustiva pela consciência das vibrações que o corpo emana.
Os objectos escolhidos para esta exposição são axiomáticos na sua relação com esta problemática.
Vasco Costa adopta objectos que podem ser denominados como lugares do corpo.
As banheiras, como primeiro exemplo, são lugares do corpo, aplicam-lhe sensações, amiúde, sinestesias. As banheiras expostas como objectos escultóricos não fogem às atribuições que lhes foram passadas pela História da Banheira; no entanto, deixam que se encontrem nelas correlações que se redefinem na obra de Vasco Costa — redefinem-se não porque carecem de novas ou diferentes definições, mas porque a carga imposta sobre elas pelo corpo-autor-criador sugere uma catrefada de recursos análogos. Se a banheira é definida como uma matéria criada para servir o corpo, com a sua horizontalidade, a sua ergonomia, a sua função de conter e receber o corpo e a água com o intuito primário da lavagem ou da limpeza, a apropriação do objecto na esfera criada pelo artista sugere-nos também perguntas. Perguntas acerca da domesticação do corpo, do seu acolhimento em oposição ligeira ao seu «contimento», da violência exercida sobre o mesmo ou da agressão relativa à sua zona de conforto.
Sugerimos dois exemplos, a verticalidade imposta e reforçada, e o corte. A comutação da horizontalidade pela verticalidade constitui uma agressão ao conceito de estabilidade, mas, ao mesmo tempo que essa verticalidade é instituída, os valores do objecto aproximam-se de um consentâneo predicado de objecto escultórico. Vemos, portanto, uma banheira que se torna em vertical e se apodera de valores que podemos sondar: o objecto como totem; como estátua ou como uma estrutura apoiada e recomposta, particularmente receptiva a uma miríade de campos de entendimento e recepção.
Outro exemplo é o corte, a separação, mas que neste caso implica também a sua união. Separada, seccionada, mas ainda inteira. Perde a forma habitual, mas conserva unidade. A violência do corte de um objecto físico reporta-nos à violência sobre o corpo. Dá-nos, neste caso, pistas acerca da ausência da circunscrição, do desconforto gerado pelo desaparecimento do amparo comum às paredes da contenção. O objecto-escultura já não contém o corpo (nem outro elemento físico); contém, por outro lado, questões relativas aos dogmas que criamos para fantasiar o conhecimento que pretendemos ter em relação ao nosso corpo, ao espaço que o envolve e aos vínculos que pensamos serem estreitos entre eles.
2.
A partir do interesse filosófico partilhado por Maurice Merleau-Ponty, o segundo corpo, conhecido como «espaço», transpõe uma barreira de objectividade na criação de um subjectivo, fora dos cânones geométricos, arquitectónicos ou terrenos.
Este corpo e a sua espacialidade são unos, e, nessa acção de se tornarem em indivisos, convocam o real e o virtual e o físico e o cognitivo. Este spatium perde consequentemente o seu próprio sistema de intencionalidade sendo por fim baseado na percepção.
O pensamento «espacial» do século XX, que é criado a partir das questões prementes da época, como a psicologia, as questões da etnologia ou a prática científica, alinhava no conceito de um espaço objectivo universal. A fenomenologia de Merleau-Ponty avança com a ideia de vários espaços subjectivos que na sua pluralidade desembocam num único, o da percepção, antagónico ao espaço abstracto da geometria.
O objecto que brota no corpo-espaço tem frequentemente a habilidade de o transformar. O espaço material que comporta o objecto e o espaço cognitivo que o procura receber grudam-se às suas qualidades intrínsecas para criar um lugar onde sobrevivam e confluam.
Vasco Costa traz-nos exemplos disso mesmo.
Uma peça de carácter dubiamente instalativo, composta por várias grades ou portas de gradeamento, surge no local físico, quiçá convertendo as paredes em muros. A sua linguagem rebuscada e confrontadora permite-nos pensar na delimitação do próprio espaço. O «pensamento» que pode discorrer dessa aplicação de limites não contempla somente a ideia sine qua non de restrição, abre também o «para lá» do permitido. Essa acareação consente, por sua vez, o agudizar do olhar perceptivo em relação ao espaço.
Embora a significação material do objecto seja dura e brutal, ilustrada pelo minério transformado que é o ferro, o seu leque de interpretações é extenso e maleável.
Reconhecemos duas ideias: a ideia de gradeamento com a noção de segurança do corpo, como também o poder que o próprio corpo adquire com a possibilidade de circunscrever território. Reconhecemos igualmente outra ideia: a de que o território possa ser circunscrito pelo mesmo material, com o objectivo de o prender, isolando-o e afastando-o do exterior. Estas noções serão princípio para uma panóplia de ilações possíveis referentes à peça em questão.
A questão do território no corpo-espaço aparece novamente e objectivamente numa parede construída em chapa ondulada no extremo oposto do espaço expositivo. Embora existam diversas formas de pensar o objecto, também ele ambíguo na sua proximidade à instalação, há uma que nos surpreende: a sua solenidade. A sua solenidade joga no campo do aparato, mas também na sua relação com o corpo-espaço, com as suas subjectividades e particularmente com as qualidades que possui e com as quais lhe é permitido transformar o espaço físico abstracto nesse lugar-corpo de percepção de ideias e matéria.
Não obstante a sua corriqueira materialidade, a forma como é pensado no espaço cria-nos outras validades estéticas. Podemos facilmente, num exercício provocado, relacioná-lo com um retábulo, ou ainda com um pormenor arquitectónico numa fachada de um edifício. Ao invés, a nossa percepção pode colocá-lo num galinheiro ou numa coelheira.
O que não se consegue dissimular é o seu lugar e o seu diálogo com os outros objectos e a abrangência do espaço.
3.
O terceiro corpo e a sua interacção com os anteriores surge-nos, primeiramente, numa análise crítica e livre do trabalho de Vasco Costa no seu todo.
Numa primeira tentativa de exploração da ideia, emerge-nos a concepção de um corpo que paulatinamente navega entre o primeiro e o segundo corpo. Este ente invisível, no decorrer da sua viagem entre os dois pontos, a determinado momento, estaciona no seu próprio ponto. Lemos o ponto A como o primeiro corpo, o B como o segundo corpo e o C como o terceiro corpo. A partir do instante em que se estabelece, o seu movimento é alternado entre o seu ponto e o ponto A e entre o seu ponto e o ponto B, criando, por assim dizer, um canal que alimenta o fluxo de energias que permitem o êxito do interligado, o desígnio. Estas deslocações produzem efluências, emanações de cariz transcendental que conferem aos objectos e aos corpos determinados poderes.
Os objectos que destacámos anteriormente, patentes nesta exposição de Vasco Costa, todos eles sem distinção, pertencem seguramente ao universo do primeiro e do segundo corpo que aqui brevemente roçamos com o toque.
Todas estas obras são lugares do corpo e lugares do espaço, mas onde se encontra a alegre sintonia entre estes dois corpos que permitem a criação do corpo da obra de arte?
Queremos supor que exista este terceiro corpo vadio, negável e delével, que por artes mágicas confere harmonia aos agentes presentes no processo de criação da obra de arte até ao objecto de arte em espaço expositivo.
Rubene Palma Ramos
O autor não segue a grafia do recente Acordo Ortográfico.
MISE EM CENAS
This speculative moment is indifferent to the subject. It exists in itself and could function just as well without a spectator. It is not directed toward anyone; the viewer is just a witness. The zones of non-knowledge reappear here, and they endlessly create the possibility of something, a context, an idea. It occurs through complexity, contingency, hesitation.
The rules of the game are already set out, but the events in fact organize themselves independently and without concern for existing rules. What is produce when someone experiences these events is unwritten, as it is precisely written forms, the language “in between” things and entities, that I’m trying to leave undetermined. There was a transition from exhibiting something to being exposed to something.[1]
Várias paredes amarelo-açafrão formam um semicírculo rarefeito. Este, decorado com alguns troncos pintados da mesma cor, delimita um espaço onde outros objectos se encontram espalhados, desarrumados, organizados, cuidados e em uso.
Do lado esquerdo, uma bancada improvisada na parede (talvez seja também um banco?), feita de canas e bocados de madeira. Em cima, uma grade de cerveja com garrafas vazias (minis) e uma caixa de cartão parecem esquecidas em cima de lascas de madeira e panos e terra.
Por baixo desta bancada: um cesto em decomposição, cheio de garrafas de cerveja vazias; uma casca de coco; mais garrafas de cerveja, sumo e uma lata de «spray» no meio de terra e pedras.
Na parede acima da bancada, um póster da Nastassja Kinski nua com uma jibóia encontra-se emoldurado por uma discreta tira de madeira e enfeitado com luzes de Natal.
O chão, de terra batida, parece ser varrido em círculo no centro, arrastando o lixo para as zonas limítrofes do «abrigo».
No tecto, bandeirolas recortadas de sacos de plástico coloridos fazem um triângulo.
Finalmente, ao centro, uma cruz de madeira, volumosa, pintada de preto, tem amarrada com correntes e cordas uma cadeira de madeira. Por baixo da cadeira, um pequeno caixão decorado com cruzes, manchas e pó assenta em duas plataformas revestidas de uma camada espessa de cera.[2]
A primeira coisa que é um pouco desconcertante nesta imagem de um altar vodu é que não se percebe onde começa e acaba o altar… todo o espaço, pode ser, em potência, um altar. Não é possível distinguir os objectos sagrados dos objectos de manutenção dos rituais, dos objectos pessoais do Manbo/praticante.
Vamos assumir que todo o espaço retratado nesta imagem goza dessa sobreposição: de ser pessoal e simultaneamente sagrado. Os objectos que ali se encontram partilham a possibilidade de ser qualquer coisa como místico-domésticos, ou seja, não se percebe onde começa e acaba o domínio do sagrado nesta imagem. A natureza da situação é necessariamente ambivalente. Tudo parece místico ao mesmo tempo que tudo parece estar a uso.
Este é um espaço de interdependência entre elementos naturais e sobrenaturais, e o «sobrenatural» está a uso… é activado consoante as necessidades nos artigos mais insuspeitos, e ali permanece, como uma sombra colada aos objectos. Estes não fazem parcimónia, estão ocupados, como que transportando mensagens e sinais de «outro» espaço (metafísico?) para a vida prática dos viventes e ao contrário. No entanto, não os podemos definir como simples portais, mas, acima de tudo, como possibilidades de acção, um pouco imprevisíveis, entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
Cada objecto se desdobra em mil possibilidades daqui e do além e todos juntos são um mundo em streaming. Falamos de mecanismos e forças que circulam entre este acumulado de objectos e um outro espaço — simbólico, imaginado, radicado num sentido de fé e que vai além das qualidades materiais de cada objecto.
A operação que parece activar estes objectos de poder é particular a cada situação, necessariamente flexível para se recolocar consoante as condições sociais de um determinado milieu. O vodu não apropria só outros símbolos religiosos, absorve também o mundo à sua volta, como se fosse um espelho convexo.
Isto faz com que cada operação (de pequena ou grande escala) goze de uma certa autonomia na formulação de entendimentos e até práticas de espiritualidade… enfim, uma não-ortodoxia, altamente eficaz na aplicação de práticas místicas na vida quotidiana.
O trabalho de Jorge Maciel está nas antípodas da espiritualidade vodu, mas, à semelhança deste altar nas suas instalações, cada objecto parece ser tratado na suas possibilidades performáticas: do que está a uso (em movimento); e do que podem fazer (que potencialmente os ultrapassa).
Do que está a uso, não percebemos logo, estamos num espaço de intimidade, onde as coisas vivem, seguem o seu curso, acumulam funções. Já não é só o gesto deixado pela mão do artista, é também a iminência do gesto deixado pelas próprias coisas. Aqui, insinuam-se acções, imaginam-se movimentos, desde o mais ínfimo pormenor até à totalidade da instalação. Na verdade, só mais tarde nos damos conta de que o espaço da instalação já começou «há séculos», não se percebendo onde começa e acaba o bendito espaço da «arte». Serão palcos com outros palcos dentro, onde cada objecto perde e ganha relevância alternadamente, onde sentidos se acumulam e, no fim, nenhum objecto se retém na memória além do streaming de possibilidades, movimentos e referências.
Do que os objectos «podem» fazer, e para lá da especulação do sobrenatural (para o qual devíamos arranjar um equivalente urgentemente), só nos resta a tensão contida na sua existência. Entre as suas performances latentes (materialmente previsíveis) e as suas performances em potência, concretizem-se material/imaterialmente ou não. A qualidade insubestimável de serem instáveis ou de projectar várias sombras ao mesmo tempo. A qualquer altura, um objecto pode ser reconduzido para uma função extraordinária, quebrando necessariamente as regras do «acordo» subentendido no espaço expositivo.
Como nos altares vodu, não nos interessam tanto as qualidades materiais dos objectos, mas as «vibrações» mais ou menos estranhas que os animam, criando situações de ambiguidade sobre as suas funções, e muito importantes sobre o seu devir.
Por fim, falta dizer que há uma outra linha de sentido que atravessa o trabalho de Jorge Maciel, e que não tem nada que ver com vodu (ou talvez tenha?). É o humor. Há uma coisa que nos permite alcançar o humor nas referências destes objectos: é reconhecer-mo-nos nessa cultura material, que permanece junto ao osso e que está longe, bem longe, da vida burguesa.
Sara Morgado Santos
A autora não segue a grafia do recente Acordo Ortográfico.
[1] Marie-France Rafael entrevistou Pierre Huyghe, em 8–9 de Setembro de 2011, na Galerie Esther Schipper, Berlim. Revista em 2013.
[2] Descrição com base numa imagem de Ounfò of Louis Marc Désir in Jacmel, with Danbala depicted in the poster of Nastassja Kinski on the wall, in Vodou – Visions and Voices of Haiti, de Phyllis Galembo.
Visita Guiada
reportagem do Diário de Coimbra