Arte Now, Apocalypse Later


“A ordem presente é a desordem futura”

 Saint Just

Podemos erguer um dispositivo historiográfico sobre a relação entre a política e a ordem “natural” da arte e demonstrar que a política é uma das propriedades que se manifestam no corpo das experiências que situamos culturalmente como sendo arte. Afirmar que todas as decisões e acções artísticas são decisões e acções políticas situa-se no mesmo plano de dizer que estamos vivos antes de morrermos. Ninguém escapa à violência da história, ao confronto entre o princípio de realidade e o princípio de prazer, e aquilo que a arte é (que consegue ser e que a deixam ser) actua nos limites do poder, expõe-se à noção de soberania, aos problemas do livre arbítrio, à relação entre indivíduo e Estado.

Essa condição política da arte está, ainda mais do que Antígona, dividida entre obedecer às leis do soberano (o mecenas, o Estado, o sistema artístico) ou condenar-se. Até os insuspeitos paisagistas ingleses estavam a politizar a natureza, introduzindo-lhe valores estéticos aos quais o seu fluxo, a sua descontinuidade era indiferente, e a incorporar-lhe a ideia do transcendente, pelo simples facto de virarem as costas à revolução industrial em que estavam irremediavelmente imersos, a mesma revolução que confiante na sua racionalidade, no seu controle dos fenómenos naturais, no progresso técnico imaginava um mundo com uma natureza corrigida e aperfeiçoada.

Para acentuarmos a nossa tese e arriscando até o disparate anacrónico, podemos aproximar o grupo de indivíduos que há 17000 anos, na gruta de Lascaux, dedicou horas da sua vida precária de sobrevivência, a concretizar imagens capazes de estabilizar uma ideia de memória e de quotidiano (imagens capazes, também, de confrontar essa empiria com a presença muito forte do incompreensível na aparência das coisas vivas e mortas); podemos, dizia, aproximá-los (e à comunidade a que pertenciam) das palavras com que Jacques Rancière, a partir de um leitura de Platão, define a condição política que, segundo ele, “começa quando seres destinados a permanecer dentro do espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam em mãos esse tempo que não têm para se afirmarem como gente que partilha também um mundo comum, para fazer ver aquilo que não se via ou para passarem a ouvir como palavra que discute o interesse comum aquilo que era ouvido somente como ruído comum”.

 

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Filipe Marques | how does one make a rat human?, 2011-12 | óleo, inox, porcelana, vidro aramado, ferro s/madeira | 160 cm x 250 cm

 

Sair “do espaço invisível (Gyorgy Lukács chamar-lhe-ia reificado) do trabalho”, resistir (elevar-se, contrariar…muitos verbos caberiam aqui) perante a finitude do vivido, do corpo e dos seus automatismos, dissociar-se do valor habitual dos signos, das palavras (e, acrescente-se, essa diferença pode passar como aconteceu com as convenções neoclássicas da Academia pela imobilização da função semântica), não são estas tarefas da prática artística? Não é esta a sua política (inescapável)? Enquadrar mas também decompor a desordem maior que é o real? Viver na mentira para tentar, sobretudo tentar sem o conseguir, problematizar a potência do bem para fazer o mal e do mal para fazer o bem. Ocupar um outro espaço no real que não o definido e caucionado pela mecânica (administrativa, organizacional) do comando e da obediência, do trabalho e da recompensa? Um espaço praticado como a antítese da doxa dominante mas também marcado pelas suas logomaquias, pelas suas contingências históricas, pelos seus lugares comuns? Um espaço que sonha utopicamente com a autonomia absoluta dos seus meios e objectivos mas que convive com o caos agreste das lutas ideológicas e da multidão (cada vez mais) dividida entre camaradas, adversários e inimigos.

Mas a consciência do valor político da práxis artística é uma aquisição relativamente recente para a história da arte. A consciência desse valor (e efeito) é sintomática das mudanças transformadoras que a modernidade implicou para as práticas intersubjetivas e tanto podemos situá-la no modo como Goya introduz a morte anónima e sem heroísmo no seu quadro Os Fuzilamentos de 3 de Maio (1814) como no tema da alienação tratado por Flaubert no seu Bouvard e Pécuchet (1881), tanto na emancipação em relação ao informe, ao não-histórico, que o IV Estado obteve através da pintura “democrática” de Courbet como nas indecisões ideológicas entre auto-crítica e revolução que definiram a relação de muitas vanguardas com o poder.

O artista coloca-se diante do monopólio da violência e, também ele se interroga se vai ceder à força, se vai fazer parte da ordem, também ele é comprado, também ele se cala. Ou então tudo se passa ao contrário. É complexo, contraditório o modo como ele problematiza a sua condição de autor, como negoceia a integridade do seu trabalho, como aceita o outro como interlocutor, e finalmente, como “desce ao mercado” (ao sistema, que, diríamos agora, coloniza tudo) para revelar a sua existência e, eventualmente, vender os seus produtos- segundo Stefan Zweig, o poeta Hölderlin comentara que, também, ele descera ao mercado mas que ninguém o quisera comprar e esta será uma característica do criador moderno, a dificuldade (política) em se constituir como valor de troca ou de se inserir na divisão social do trabalho.

E quais são as macro e micro políticas dessas auto-representações em que a arte é política porque é arte? Podemos resumir o repertório a dois casos gerais, o primeiro será a noção hoje desgastada perante o espectáculo da “anti-arte oficial” (mas uma noção outrora vigorosa), do artista que se apresenta como um desinibido social, como um adulto que recusa em acto os constrangimentos associados ao contrato social, outra, que combina romantismo e alteridade, é a (auto) representação do artista como um profeta motivacional que recusa a imitação do mundo e antecipa através da revolução estética e da criação do novo as aspirações de mudança que enformam a relação da utopia com a vida concreta. Hoje estes dois casos revertem nos artistas que procedem à substituição ideológica do universal pela alteridade etnográfica implicando o outro, o estrangeiro, o desenraizado, o não-especialista na invenção de uma crítica do presente que se centra agressivamente nesse presente. Assim desde a experiência de agitprop das vanguardas russas às incursões isoladas de autores-mundo a quebra de confiança (e a melancolia perante essa constatação é em alguns casos muito forte) em relação ao evidente e ao preconcebido instalou-se duradouramente na relação do mundo da supertécnica do inútil que é a arte com o mundo dos poloi, dos muitos que já não se validam e já não interagem na semelhança mas na diferença em relação à ordem estabelecida.

Como notava Clement Greenberg no seu Avantgarde and Kitsch (1939), o “momento da vanguarda” (o modernismo) é o do estranhamento da cultura burguesa ocidental em relação à sua memória, é o da crise dos seus valores simbólicos e da capacidade dos artistas (e poetas, escritores) comunicarem (e serem convincentes nessa comunicação) com as suas audiências; a vanguarda seria o cancelamento (não apenas celebrado como no caso futurista, mas problematizado como em Mondrian) dessa ligação; seria o momento histórico irreversível, dizemos nós agora, em que cessa a enunciação da arte como forma totalizante, reveladora de verdade (e de uma ordem subjacente a essa verdade) e portanto essencialista (a relação da cultura com os seus produtores e detractores não voltaria a ser a mesma).

 

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Filipe Marques | The Split Subject of Interpellation, 2011-12 | óleo, inox, porcelana, impressão s/acrílico e ferro s/madeira | 160 cm x 250 cm

 

A verdade sem autor cessa de existir para a arte e esse é um facto político. E mesmo o agonismo prescritivo das vanguardas que derivará para a crescente especialização (e perca de clareza) da sua mensagem, não é mais do que a exacerbação dessa separação irreversível entre arte e verdade. Ainda estamos a falar de política sem a enunciar sobretudo se pensarmos, como T.J. Clark o faz, que Greenberg vê na vanguarda o único instrumento capaz de preservar (através de uma meta-linguagem e de uma especialização) a Cultura do relativismo desolador do kitsch.

Um aspecto a relevar é que o uso da questão política (e insista-se neste ponto, um uso não apenas lido como a construção social da sensibilidade do autor mas como um método de trabalho onde a filosofia e as suas aporias perturbam a rotina e a indulgência do fazer, da manufactura, do esperado) confronta-se com os erros e misérias da sua história recente e hoje forçosamente têm que se aferir os limites temporais do valor de uso da arte de propaganda (mas também têm que se questionar a entropia resultante da arte como discurso da arte). É verdade que o valor político da arte tem sido problematizado (e reinventado) por concepções antagónicas que o colocam simetricamente como uma ameaça à ideia de diferença, como lugar de privação (um momento inferior, “plebeu” da vida artística dos objectos) ou que colocam esse valor numa relação directa com a realidade transformada, numa relação que se situa, em conflito, na heterogeneidade da experiência quotidiana e dos sistemas abstractos do poder.

Talvez a grande aprendizagem desses erros e misérias não esteja tanto no monocromatismo do mundo. O mundo é imaculado e sujo, belo e ignóbil, haverá culpa e inocência, egoísmo e desprendimento; sim, a multidão está dividida, existirão diferentes escalões e importâncias de “eles“ e de ”nós”, de administrados e de administradores, e a violência é um procedimento da história mas a tarefa precisa de se orientar menos para o maniqueísmo do preto e do branco (porque o “nós” pode rapidamente tornar-se no “eles”) e para compreender o que faz com que os homens aceitem a realidade ou a rejeitem, o que faz com que os homens se vendam ao diabo ou prefiram imolar-se no fogo do sacrifício. O artista não tem que responder (ou sequer problematizar) a questão central que nos persegue na escassez, “a quem pertence o mundo?”. A sua indiferença ou recusa é também um acto político legítimo. A ideia de política que aqui se trata ultrapassa qualquer reinvenção da politização do dever ser da arte, nem se reporta à migração do “estar juntos em oposição” para o conceito de colectivo plural de raiz voltairiana (a dissidência como o eterno presente da ideia de arte).

Impossível conclusão. O valor geral das tendências artísticas também pode ser aferido pelo modo como se inserem numa comunidade e como ao mesmo tempo subvertem as regras com que essa mesma comunidade define (para si e para os outros) a forma e o conteúdo da sua experiência, a sua memória, os seus códigos e os seus limites; não existe, portanto, uma verdade absoluta, determinista, na relação dos artistas (e do produto do seu trabalho) com o mundo em que vivem e com os regimes de opressão, dominação, exploração e naturalização do instituído que definem esse mundo. Existe em contrapartida a possibilidade do conhecimento, do enquadramento, dessas modalidades de controle e destituição social ser feito a partir da experiência artística. Existe a possibilidade de pensar artisticamente o que faz do real aquilo que é.

É dentro da possibilidade da arte ser criada como política e percebida como poética ou criada como poética e percebida como política que eu ingresso as obras propostas por Filipe Marques para o CAPC; elas denotam uma forma de pensamento com imagens que dá enfase ao não visual para contraditoriamente falar do cepticismo e finitude do corpo, do corpo em desordem, que vive em perca, que não consegue sair do “espaço sensível do trabalho” (ele grita, “pissing, “ass”, “shit” mas não age).

 

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Filipe Marques | From Hermeneutics to the Cause, 2011-12 | ferro e néon | 240 cm x 250 cm x 120 cm

 

A montagem das obras está enraizada em termos formais na esfera do poder tardo-modernista, dito de outro modo, problematiza-se a partir da reinvenção da ruptura e da crítica da comunidade naturalizada: a pátria, a língua, a religião, o corpo, o monetarismo expressam-se nos esquifes cruciformes, nas interjeições fisiológicas, numa experimentação de tentativa e erro para superar o dualismo problemático entre arquétipo (a forma desejada, a geometria do utópico: as caixas metálicas, vitrines/showrooms do estático) e o protótipo (o fluxo do vivido, o ser existindo e agindo na forma consumida pelo tempo).

Estas são metodologias que sobredeterminam a impossibilidade de uma reconciliação antropológica (não haverá harmonia nem consenso mas luta, só ela garante que o fluxo não é repetição mas expectativa, só ela garante que o futuro não exista mas que o presente se separe do passado). Daqui se depreende que a imagem central das obras de Filipe Marques, que a sua combinação de controle do vazio e de semântica dos materiais, é um trabalho sobre esse objecto que existe em lado nenhum, sobre a contra-visualidade daquilo que nos separa do aparente, do eterno retorno. As palavras comem o espaço e só assim é que ele se torna radical.

Pedro Pousada