Looking at Animals





O olhar como um gesto,
como um corpo

Nesta exposição, intitulada Looking at animals, de Joana Villaverde, a relação com o Outro é construída sobre uma linhagem de relações que invariavelmente nos confronta com o corpo, com um determinado contexto onde esse corpo se expande ou, pelo contrário, se contrai e reencontra o seu sentido noutras morfologias que aparentemente escapam à figura humana, mas da qual resgatam um sentido da vida que nos conduz a repensar-nos enquanto seres em relação, que se olham e se reconhecem, sejam estes animais, no sentido mais literal, ou humanos, numa acepção ética, moral e política que nos define. 

As obras expostas foram concebidas em meios diversos, como a pintura a óleo, o desenho e o vídeo, fortemente marcados por um desenho vigoroso e por vezes próximo de uma prática expressionista, representando diversos animais. Regressamos, deste modo, à alteridade, com os outros, com o nosso olhar, e com os espaços e os lugares que estes habitam e que vivem no quotidiano da artista. Mesmo quando se fixa num determinado lugar, como o ateliê, é parte da vida que decorre todos os dias diante daquela paisagem onde a artista vive, das alterações atmosféricas e lumínicas que trespassam as amplas janelas e constroem um tempo que lhe é próprio, experimentando e trabalhando em diferentes escalas e formatos. Acresce ainda, e é um dado importante, o seu interesse pela literatura e pelo cinema, que se constituem como heterotopias que se cruzam num processo cumulativo e por vezes contraditório, no sentido em que a artista produz uma desconstrução desses espaços imaginados, fragmentando e dissecando cada momento e cada lugar ficcional. Neste âmbito, a obra do filósofo e escritor John Berger intitulada Why Look at Animals?1 tem uma particular importância na reflexão que o trabalho desenvolvido para a exposição exigiu. A artista coloca-nos perante uma frase, ou uma proposição, que nos convoca a deter o nosso olhar sobre os animais. Em princípio, será sobre os animais que fazem parte da exposição, mesmo sob uma perspectiva que nos recorda histórias encantadas que são também questionamentos da ação humana, como por exemplo na peça Os músicos de Bremen, uma composição fragmentada nos dois eixos da folha que faz referência a um conto tradicional alemão publicado pelos Irmãos Grimm. Por outro lado, duas obras intituladas Vaca I e Vaca II, talvez animais que habitam a paisagem em que a artista vive, são representadas como se fossem imagens de uma memória cinematográfica, nessa profundidade de campo, como uma espécie de trompe l’oeil que emudece a tentação do mero retrato daqueles animais.  Mas uma outra obra, intitulada HÍBRIDO, confronta-nos com um grande plano sobre uma cabeça de um animal que dificilmente distinguimos na proximidade ou semelhança com os outros. Pode ser um cão ou um cavalo, ou um ser mítico, por exemplo, mas pode ser só uma cabeça sobre um fundo escuro, terroso, que nos olha e abre a sua mandíbula como se nos atirasse um grito, talvez até um chamamento que nunca iremos ouvir.

A linguagem escrita presente nos títulos, por vezes de compreensão menos imediata, tem uma particular relevância no caso de OXI, duas pinturas de grande formato que identificam uma representação de um canídeo, ou de um pequeno desenho com uma linha que parece enunciar um perfil, porventura abstracto — e somos colocados perante um embuste. Que é, ou porquê, Oxi? Oxi é uma palavra grega, um advérbio de negação. Uma das obras, OXI II, apresenta um grande plano sobre o olhar do animal, enquanto OXI I nos confronta com uma posição do corpo que quase poderíamos assemelhar a um movimento de defesa. O título das duas obras é revelador dessa geografia heterotópica, em que o aspecto vernacular e quotidiano da vida da artista coexiste com uma consciência social do seu tempo. Oxi é, deste modo, tanto um advérbio de negação como uma palavra que se encontra numa zona paradoxal, entre o afecto, o acaso e a necessidade de deslocar o significado de um acontecimento. Por um lado, está intimamente ligada ao nome do animal representado, a cadela da artista, e por outro, marca um determinante momento político europeu, pois foi o slogan mais ouvido no dia do plebiscito grego, que em 2015 rejeitou as políticas económicas europeias para a Grécia. Joana Villaverde não age sob a razão celebratória de um acontecimento. Ao invés, junta e funde diversos acontecimentos que estão marcados pela memória colectiva, e simultaneamente pela sua intimidade, pela casa, e por todos os que lhe são próximos. E de forma semelhante, nas pequenas peças em vídeo, resiste uma circularidade auto-referencial da palavra dita, e no movimento do desenho, um processo de ocultação e de revelação, em que, ao contrário das peças de grande formato, parecem extinguir-se num fragmento do tempo, mas regressam construindo-se como memórias que se sedimentam.

João Silvério

O autor segue o anterior Acordo Ortográfico.

NOTA
1        John Berger, Why Look at Animals?, Londres: Penguin Books, 2009.