A beleza terá de ser eliminada


O paisagismo é, entre muitas outras coisas, o efeito cultural de um conflito entre a necessidade histórica de modernização e a melancolia de uma separação que o fluxo nevrálgico dos boulevards e a burocracia produzira; um conflito, em que a caça, o desporto, os banhos termais, os piqueniques, os passeios pelo campo, o campismo, a naturalização do week-end, constituíam a dimensão mais mundana, mais física. O sujeito, burguês e proprietário (em fuga dos processos de dessacralização, da separação entre ego e totalidade que a revolução política e económica da sua classe inventara), redescobrira a sua animalidade nesses novos hábitos mas necessitava de uma redenção arcádica, de uma compensação estética e o paisagismo pareceu cumprir essa tarefa assumindo-se como a dissonância pictórica entre o pitoresco e o sublime, entre o conforto (e o deleite egoísta) e a tragédia (a sensação da forma natural como a perca de escala, a irrelevância do destino humano). O orgulho da sua obra, das suas realizações e o terror do seu fim e do silêncio indiferente da totalidade parecem alimentar a relação do bom burguês com a paisagem. Ali não há nada de seu, a sua identidade dissolve-se,obscurece- se, perde força posicional e contudo o burguês comove-se, encanta-se; ele quer morbidamente reproduzir a sensação óptica, holística dessa perca; quer substituir os riscos, o perigo, a imprevisibilidade do “estar lá”, na falésia junto a um mar tempestuoso, num glaciar alpino, num canyon labiríntico, no estio insalubre de um campo da Toscânia, pelo resguardo do ecrã pictórico. Esse perigo é congelado numa ficção: a paisagem.

 

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O Círculo de Artes Plásticas junta dois artistas plásticos que trabalham em torno da representação da paisagem. Desenvolveram um trabalho sobre a Serra da Arrábida por onde caminharam juntos e conversaram, um diálogo que dá forma à exposição.

 

(…) Pedro Vaz resiste a mostrar-nos a finitude do representado, os contornos que o fixam, que o estabilizam, as fotografias ficam para trás na sucessão do percurso, a queda de água está intencionalmente desfocada e a substância líquida torna-se numa pulsação de luz e cor onde a forma perde a sua espessura.

O paisagismo de Pedro Vaz é também produto de uma contradição como foi o de Constable e de Turner, produtos culturais do capitalismo nascente e da revolução industrial. Vivemos numa época

pós-fordista e o nosso quotidiano, o das nossas viagens, das nossas permanências faz-se num território ocupado por “monumentos ao presente não-histórico”: pedreiras transformadas em lagos contaminados, esplendores da industrialização transformados em cemitérios do trabalho morto, ruas inacabadas de bairros desabitados, campos repletos de ruínas; tudo parece convencernos que já não existe um palmo de terra onde o mundo natural não seja apenas um baldio à espera de ser construído. Contudo a posição de Pedro Vaz é antitética em relação a este monopólio e aparente fatalismo de readymades sociais e tecnocráticos e contraria em absoluto o nihilismo económico que nos configura como “robot-produtores consumidores”. É este o enfoque ideológico das obras que aqui nos presentifica.

(…) Não sem uma ponderação dos matizes que uma observação destas exige, dir-se-ia que o trabalho de João Queiroz é uma tentativa de densificar a nossa relação com a paisagem ou, antes, com um ver que se desloca e que é já pensamento. De outro modo, dir-se-ia ainda que João Queiroz parece afirmar uma espécie de distância em relação às ciladas perceptuais modernas que se abastecem numa concepção objectual, reificadora, e fundamentalmente desencantada, porque literal, do mundo.

Regressando à pintura oriental, o que João Queiroz exige de nós é que nos mostremos atentos à impossibilidade de mapear partições entre a escrita e a pintura nesta relação com o mundo. Desenhar ou pintar não é também escrever?, poderia perguntar-nos o artista. Parece indisputável que os mestres calígrafos, quando escreviam também desenhavam ou pintavam (os termos são aqui permutáveis) o que observavam, o mesmo é dizer, o que se movia, mesmo que imperceptivelmente, na natureza. Não se tratava porém, tal como em João Queiroz, atrever-me-ia a sugerir, de fazer justiça a contornos ou formas, mas antes de reproduzir, nos seus gestos, os ritmos e as oscilações do mundo.

Este projecto que agora se apresenta ao público em Miranda do Corvo é o resultado de três exposições do CAPC com os artistas Pedro Vaz e João Queiroz, Stimmung de Pedro Vaz, com texto de Pedro Pousada, Ahnungslos de João Queiroz, com texto de Luís Quintais e a exposição colectiva Raukoon, um projecto das Linhas Cruzadas.

Para a construção deste texto, colamos livremente excertos dos textos das respectivas exposições.

Pedro Pousada, Luís Quintais e Carlos Antunes – Coimbra, Novembro de 2014

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Exposição A beleza terá de ser eliminada, na Casa das Artes de Miranda do Corvo

 

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Exposição A beleza terá de ser eliminada, na Casa das Artes de Miranda do Corvo