Re-Turn
Há muito que José Luís Neto realiza «trabalhos de apropriação»: 22474 (2000) e 22475 (2003), a partir de Joshua Benoliel, Anónimo (2005), a partir de acervo constituído por panorâmicas da cidade de Lisboa de desconhecido do início do século XX, High Speed Press Plate (2006), a partir de chapas de vidro preparadas com emulsões fotossensíveis, July 84 (2010), a partir de fotografias amadoras sujeitas às sevícias do tempo, ou PMC/P.M.I. (2008), fotografias tipo passe encontradas num passeio. Por vezes são seleccionados detalhes e estes são enormemente ampliados. E o que é que nos é dado a ver? Algo que, evidentemente, vem do passado, e no entanto parece acertar em cheio no presente; por vezes, uma palpitação entre fotografia e pintura; algo que nos desloca ou que, usando de empréstimo as palavras de Sei Shōnagon, «faz bater o coração».
Na Interpretação dos Sonhos, Freud reconhece a singularidade das imagens do sonho no facto de constituírem fragmentos de imagens diurnas, portanto anteriores ao «trabalho do sonho», mas em que ocorre uma inusitada deslocação das intensidades psíquicas: imagens relacionadas com eventos traumáticos que não nos afectam, e imagens anóditas que contudo podem suscitar reacções emocionais intensíssimas. O sonho remonta e, ao fazê-lo, remistura as intensidades.
Sabemos muito bem do que é José Luís Neto se apropria, sabemos ainda que são fruto do acaso, da voragem do tempo, fruto de uma selecção, de reenquadramento, de opções muito precisas quanto aos formatos de apresentação, sentimos a incandescência das suas imagens…
Para Deleuze, em Godard duas imagens convocam uma terceira. Didi-Huberman vai mais longe, ao considerar que uma única imagem convoca desde logo uma outra. Num caso como no outro, as imagens são múltiplas. Com José Luís Neto, bem se vê que assim seja: photomatons assombrados por retratos de Dumas, cenas da vida familiar e profissional reminiscentes do colorismo pop, do expressionismo abstracto, de Richter, de Twombly, sombras provindo do reino dos mortos… a lista é extensa e contraditória, tudo se mistura com tudo, as imagens fazem curto-circuito e (assim) tocam-nos, abrem a nossa imaginação.
João Francisco Figueira