Ciclo Santa Cruz
Tantas casas.
“Ao olhar para o céu em determinadas condições atmosféricas, de hora e de luz, é possível observar três satélites que foram lançados para o espaço entre 1953–1958 e ali permanecem.
O Hope tem a forma de lápis atarracado, de cor prateada (…) no seu interior estão os corpos (…) de três homens.
Pelo menos quatro vezes maior que o primeiro, liso, em forma de ovo, de uma extraordinária cor laranja (…) temos o L.E. (Lois Egg) (…) em homenagem a Lois Berger a amada mulher do construtor, que o acompanhou e com ele ficou lá em cima a girar, a girar eternamente (…) bem como mais sete companheiros.
Se deslocarmos o óculo vinte e quatro graus encontramos Faith, o último
a ser lançado, para tentar aquilo que os outros não tinham conseguido.
Tem um vulto semelhante ao Hope, só que um pouco maior. Pintado às riscas amarelas e pretas que ainda hoje se distinguem. Partiu com cinco homens.
Nem uma mensagem, nem um sinal de vida.Tudo foi selado pelo silêncio (…) espalhados pelo nosso pequeno mundo, permanecem os seus túmulos vazios. No céu continuam a girar, provavelmente incorruptos (…) no meio
do céu os mortos.”
Como tudo isto é aterrador e como tudo isto se torna normal.
Viu homens disparando pistolas uns contra os outros, e um barco a remos, onde havia uma família com crianças pequenas, ser esmagado e afundado por uma lancha.
Chorou mas continuava a observar como se desde sempre soubesse ser esta a condição humana. O alongamento dos corpos, as queimaduras nos flancos, nos braços nas unhas, e os olhos. Olhos fixos fixos.
Há muito que a verdade já não é utilizável para resolver os nossos dilemas.
Lembrou-se do pai à mesa de natal “não tenhais medo, o amor é como o fogo não se propaga onde o ar escasseia.”
Tantas casas.
A lentidão no trânsito devo reconhecer que me ajuda a contemplar os corpos desmembrados dos acidentes.
“Nem uma mensagem, nem um sinal de vida. Tudo foi selado pelo silêncio (…)
espalhados pelo nosso pequeno mundo, permanecem os seus túmulos vazios.
No céu continuam a girar, provavelmente incorruptos
(…) no meio do céu, os mortos.”
Território e Acção
Inscreve-se este novo ciclo no programa de estratégias que se endereçam à sociedade civil, que passam por posicionar algumas das actividades do CAPC em lugares da cidade onde haja uma maior circulação demográfica; pretende-se especificamente captar a atenção daqueles que não frequentam habitualmente o CAPC ou sequer conhecem o seu papel na produção e divulgação da produção artística contemporânea e desse modo socializar a mais-valia artística e simbólica que se concretiza nos diferentes espaços do CAPC (CAPC-Sereia, CAPC-Sede). De espaço cultural expectante que aguarda os seus espectadores, os seus visitantes, de espaço de representação do campo artístico contemporâneo o CAPC assumiria um contrato social com a cidadania anónima de Coimbra, realizaria uma migração dos seus conteúdos para o círculo da Civita Augescens, isto é para o interior dinâmico de Coimbra, para a sua capacidade de recepção e acolhimento dos outros, para a cultura da plurietnicidade e da supranacionalidade que definem o esforço desta urbe em se afastar do declínio demográfico e económico.
É o CAPC a descer à cidade, inquirindo e desconcertando os cidadãos, mobilizando o quotidiano, promovendo a capacidade de recepção crítica. O ciclo geral Território e acção será constituído por quatro ciclos: Santa Cruz, Espelho, Linha defensiva do Mondego e Link.
Santa Cruz
Com Tantas casas, de Moirika Reker Gilberto Reis, o CAPC prossegue um ciclo de exposições na cabeceira do Café Santa Cruz, lugar emblemático da baixa coimbrã e ainda hoje um espaço polarizador de muitas sinergias locais.
No lugar do altar, na “cabeça de Cristo”, organizar-se-ão uma série de iniciativas artísticas explorando critica e reflexivamente os protocolos da representação numa sociedade ela própria profundamente iconocrata e marcada por processos de mediação distrativos, escapistas e de crescente ambiguidade semântica.
Num lugar que numa primeira fase possuía um posicionamento monossémico e prescritivo, onde se ancorava a liturgia do divino, os sons, as texturas, os odores, o impacto visual desses momentos, e que pelos percalços, inibições e ansiedades da história grande se foi acomodando a novas funções de que o Café inclusivo, plural, tertualiano de Santa cruz é a mais recente; num lugar com este “excesso de consciência histórica”, o CAPC propõe-se ensaiar um diálogo com a cidade em que vive e fá-lo através do problema artístico (o que é a arte? quando há arte?), problema que nos ùltimos cinquenta anos tem vindo a debater, a tentar clarificar mas também a indeterminar ; a atenção inquiridora, proponente do CAPC perante este problema expressa-se aqui, neste momento inicial, tanto na sua condição de experiência, de algo que é extrínseco, que é da ordem do sujeito que observa, que convive, como na sua condição de forma significante, de obra.
Esta iniciativa do CAPC agrega-se a um tema, os protocolos da representação, que persiste e apura-se no objecto artístico contemporâneo com outros desenlaces práticos.
Com efeito não são só audíveis mas actuantes na actualidade da prática artística as permutações históricas que a revolução simbólica modernista estabeleceu entre uma estética da comparação (,a dramatização narrativa do aparente, a dialéctica entre verosimilhança e artifício, entre segredo e transparência) e uma estética da comparência (do nomeado e do irrepresentável).
Ao destituir o imitatio como o único principio activo do acto de representação (de recolocação no mundo) a cultura artística do século XX, independentemente do paradigma ou periodização que se proponha, abriu para o espectador (mesmo para o mais inexperiente) novas possibilidades de negociação e de mobilização poética na sua relação com o mundo vivido. Essa Arte aproximou mesmo que residualmente o interesse humano do interesse artístico obrigando o sujeito que observa a convalescer do pathos determinista do pitoresco, do “fácil”, do “expectável”, do “semelhante”, obrigando-o para parafrasear Kant, a “audare sapare (ousar saber)”. Se conseguiu ter êxito será outra discussão.
Certo é, contudo e contraditoriamente, que quando nada é reconhecível, quando não só se prolonga o rastreio perceptivo do espectador como se desfamiliariza, se torna estranho, difícil de interpretar aquilo que se dá a ver, a Arte, (e as obras que aqui estarão expostas disso falarão), desenvolve, (aperfeiçoando, criticando, renovando os mecanismo da representação), um esforço histórico para enraizar no mesmo plano conceptual o “Nós” e o “Eles”, isto é, a correlação de forças entre um Eu (eu sou Imago, logo existo) e a diferença do Outro (a persistência de outras antropologias da identidade e da percepção e representação do mundo); a Arte treina-nos a interrogarmos o mundo fora dos nosso fins, das nossas preconcepções. E é esse esforço que aqui na cabeceira de Santa Cruz também se positiva.
Pedro Pousada e Carlos Antunes, Janeiro de 2012