O Kremlin de Santa Clara – A Praça das Cortes


 

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Praça das Cortes de Coimbra

 

Localizada na margem esquerda do Mondego, sensivelmente no sítio onde foi fundado o Convento de S. Francisco da Ponte (1247), a Praça das Cortes evoca a memória de D. João, Mestre de Avis, proclamado Rei de Portugal e dos Algarves nas Cortes de Coimbra, em 6 de abril de 1385. Fernão Lopes, cronista do reino, relata a chegada de D. João a Coimbra e a receção que lhe foi dispensada pela numerosa comitiva que o acolheu, em Santa Clara, e que incluía gentes de todos os estratos sociais, antecipando o momento da sua aclamação como monarca.

Na proximidade do Mosteiro de Santa Clara, a Rainha Santa Isabel fundou um hospital, destinado ao acolhimento de trinta idosos, decorria o ano de 1322. Considerado o maior hospital medieval de Portugal, funcionou como fator de atração da população e foi decisivo na criação de um novo burgo urbano, designado inicialmente de Paços da Rainha e mais tarde de Santa Clara.

O rio formosíssimo, e na corrente tão plácido que parece que não está a correr ou se está estanque […] acolheu, na sua margem, duas outras casas monásticas — o Convento de Celas da Ponte ou de Santa Ana (1174) e o Conventode S. Francisco da Ponte (1247). As frequentes inundações do rio e o crescente assoreamento do seu leito ditaram o progressivo abandono da área. Clarissas, Franciscanos e Eremitas de Santo Agostinho assistiram, impotentes, à destruição progressiva das suas casas e viram-se forçados a escolher novos locais, acautelando o risco de invasão das águas.

Foram vários os projetos que se criaram para minorar os avultados prejuízos das cheias.

No Século XVIII, foi aberto um novo leito seguindo o projeto do padre Estêvão Cabral, a que se sucederam vários outros estudos e obras. Entre o final do Século XIX e o início do Século XX, a margem foi sucessivamente alteada e terraplanada com recurso a aterros de obras e entulhos das várias fábricas de louça existentes na cidade.

Na segunda metade do Século XIX, um conjunto de unidades fabris instalou-se na zona baixa de Santa Clara conferindo-lhe um novo cariz industrial que acabou por provocar um significativo aumento da densidade demográfica.

Com a inauguração da atual Ponte de Santa Clara, em 1954, foi a margem esquerda escolhida para a construção das novas instalações desportivas, integradas no plano da Cidade Universitária de Coimbra (inicialmente projetadas para a Ínsua dos Bentos, depois para o Campo de Santa Cruz). No ano seguinte, a Comissão Administrativa do Plano de Obras da Cidade Universitária de Coimbra (CAPOCUC) deu início às expropriações e aquisições dos terrenos. Em 1958, concluiu um novo alteamento da margem do rio, para então se dar início à obra que só terminou em 1969.

A polémica em torno das expropriações e demolições efetuadas para a construção do novo Estádio Universitário não permitiu a conclusão das obras programadas para a zona envolvente, nem a criação do parque de estacionamento previsto. Daqui resultou a degradação e deterioração deste espaço, agora reabilitado pela Câmara Municipal de Coimbra que lhe conferiu, assim, a merecida dignidade.

 

 

 

 

O Kremlin de Santa Clara

— Símbolos

 

Teria uns três anos e meio de idade quando ocorreu o meu primeiro… facto político. […]

É óbvio que de nada me recordo, mas meu Pai contou-me algumas vezes.

Vivíamos numa mediana mas muito bela moradia, à maneira da chamada «casa portuguesa» […] que meu Pai fizera erguer em Santa Clara, uns cem metros a sul da ponte sobre o Mondego. […]

No primeiro andar, havia uma ampla varanda quadrangular.

Aí estava a família reunida vendo passar magotes de camisas azuis a caminho da comezaina que, na pouco longínqua Quinta da Várzea, fez reunir uma das mais importantes concentrações de prosélitos do movimento monarco-fascista de Rolão Preto.

Foi então que, condicionada decerto por qualquer dito ou comentário familiar, a minha voz infantil fez erguer de surpresa algumas cabeças dos que em baixo passavam:

— Viva a República!

Como é sabido, Salazar não perdoava a quem lhe pudesse fazer sombra, pelo que em breve Rolão Preto caiu em desgraça, tornando-se depois um activo adversário do ditador.

Não sonhando eu sequer nessa altura o significado do que se passava ou o que fosse e quem fosse o chefe dos que passavam, vim muito mais tarde a encontrá-lo, embora de relance. Seria pouco depois desse breve encontro que forçadamente viemos a deixar de viver naquela casa onde eu nascera.

A barbárie do soi disant Estado Novo, que já então destruíra a velha Alta coimbrã atentando contra o património cultural da cidade, acabou por liquidá-la também. A pretexto da construção do estádio universitário nas proximidades, expropriou-a e demoliu-a. Mas, quase trinta anos volvidos, o que ainda agora se vê no seu lugar nada mais é do que um espaço inútil, desaproveitado e cheio de ervas daninhas e lixo…

Ignoro se isto confirma o que havia quem suspeitasse e à boca pequena dissesse: tão bonita moradia fora condenada, não porque fizesse falta a outro fim ou estorvasse fosse o que fosse, mas porque havia que exorcizar — pela sua imolação — a peçonha de quem lá residia e constituía persona non grata para o governo. […]

O período da Primeira República estava longe […] Mas a resistência antifascista estava bem viva e para muitos de nós, republicanos, democratas, amantes da liberdade, os novos tempos eram, como ainda o são, de confiança no socialismo — autêntica e profunda incarnação da democracia e do humanismo. […]

Na casa e com as respectivas famílias, habitávamos então — adultos e intervenientes, com posições públicas já bem marcadas na luta contra o regime e fama, que não só de comunistas — o Mário e eu nos andares superiores, o Joaquim Namorado no rés-do-chão. Berço que fora de mim próprio, viera entretanto a tornar-se também, por força deste convívio, no das primícias da minha formação literária e ideológica.

Harmoniosa e linda nas suas irregularidades volumétricas, era algo de ímpar nas redondezas, dava nas vistas. Pelo seu recorte insólito e por quem lá vivia.

E foi assim que uns provocadores, ou uns brincalhões, ou talvez uns e outros haviam passado a chamar-lhe… — e assim passara a ser conhecida já alguns anos antes da expropriação — O Kremlin de Santa Clara.

 

 

Alberto Vilaça (1992), «Símbolos», De Memória em Punho. Coimbra: Livraria Minerva.

— ALBERTO VILAÇA (1929–2007) Cidadão de dimensão multifacetada, nasceu em Coimbra em 7 de dezembro de 1929. Foi advogado, historiador, lutador antifascista, militante comunista e um intelectual de grande prestígio nacional

 

 

 

MUSEU, um equipamento projectado desde 2001 e construído pela primeira vez em novembro de 2015 para a  edição inaugural do Anozero — Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, uma organização do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, da Câmara Municipal de Coimbra e da Universidade de Coimbra.

 

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