O Passageiro | Ciclo Espelho
O Passageiro
A caverna marítima é a estrutura e o ambiente do projecto “O Passageiro” de Nuno Cera apresentado no ciclo espelho do Círculo de Artes plásticas de Coimbra, no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Fenómenos geológicos com uma grande representação simbólica, espaços de conflito, lugares do sagrado e de tensão entre luz e sombra, as cavernas representam zonas de passagem entre os sonhos e as ideias. Retiros naturais, esconderijos, lugar de invisibilidade e do ilusório, de onde se vê sem ser visto, as cavernas são também moradas eternas, a primeira e a última, a caverna maternal e o túmulo natural.
No seguimento do ideal romântico de que a natureza é poderosa e que eventualmente prevalecerá às criações temporárias do homem, a sensibilidade romântica, com as suas fortes expressões de atmosferas como nos trabalhos de J.M.W Turner, Francisco de Goya e Caspar David Friedrich, dá especial importância a intuição, imaginação, sentimento e a novas emoções como o medo, o terror e a surpresa, concentrando-se na natureza como lugar livre de um julgamento social ou de uma racionalização.
As fotografias, verticais e a preto e branco, observam as passagens, de dentro para fora, na transição entre luz e sombra, entre conhecimento e ignorância, entre o sagrado e o profano, numa possível releitura da Alegoria da Caverna de Platão.
O vídeo, com a sua estrutura temporal, editado seguindo o rácio dos números de Fibonacci, forma uma teia de movimentos de entrada e saída das cavernas marítimas numa oscilação interminável entre o exterior e interior, entre conhecido e desconhecido. O verdadeiro e único momento é o da transição e o da passagem.
“O Passageiro” é também uma forma de introspecção; de questionamento e um retrato do contexto social e político contemporâneo.
Ciclo Espelho
A história de Santa Clara a velha, é a migração de um corpus arquitectónico por diferentes condições de existência, diferentes actualidades: refúgio, casa e teatro de um mundo, estábulo, ruína, imagem, paisagem, monumento, tesouro arqueológico e finalmente laboratório e espaço museológico onde se mediatiza. Santa Clara é de facto um espaço definido pela pluralidade e descontinuidade dos seus fins.
O Mosteiro de Santa Clara ganhou o seu baptismo geriátrico (a velha) por incapacidade avançada; a função desprendeu-se da forma arquitectónica no último quartel do século XVII. E a liturgia deu lugar à pecuária.
Originalmente destinada às Penélopes beirãs, às proprietárias fundiárias (a parte feminina do cume da ordem social vigente) que recusavam um dono e que queriam decidir a economia dos seus bens, Santa Clara, a casa coimbrã das Damas Pobres, construiu-se como uma barreira arquitectónica contra a penetração forçada, contra a brutalidade testamentária do pecado original.
No uso deste edifício como no de tantos outros espaços conventuais, no regulamento do seu quotidiano intramuros, a consciência háptica do humano, a agonia dos limites e das necessidades (a comida, os perfumes, os cheiros, os sons, as febres, o desconforto do corpo em mudança, a menstruação, a fertilidade, a textura da experiência, os breviários, os excessos e as proibições carnais, as missas, a probidade, o egoísmo, o deve e o haver dos segredos pessoais e colectivos, a contabilidade das inúmeras rendas e doações, as obras, os olhares trocados, o ócio) e a renúncia dessa mesma condição humana, a busca de um dever ser mais que natural, a busca do sagrado (o transcendente, a incompletude do presente, o bem que faz o mal e o mal que faz o bem, o sacrifício, a paixão, a luta contra a repetição) foram mutuamente inclusivos.
Nas margens de um rio que os romanos chamavam Munda, claridade, ergueu-se nos finais do séc. XIII um refúgio contra o animalesco, a natureza, o inimigo; a clausura constituiu-se como um prolongamento de vida, como uma moeda de troca exigida pela protecção contra a intrusão androcêntrica, contra o matrimónio coercivo. A viúva de um soberano dedicou-lhe uma nova Igreja e um hospital. Mas esse rio, filho de uma cordilheira glaciar, existia nos interstícios do terreno, nas cavidades subterrâneas e disputando a solidez do terreno fez o mosteiro das Clarissas coimbrãs adquirir um horizonte lagunar. O claustro, as naves do templo, foram imergindo nas cheias do Mondego e o pequeno reino das Damas Pobres foi recalcitrando em diferentes pisos até ao seu abandono. O refúgio, a estética do lugar vivido, a policromia dos azulejos, a cantaria aprofundada por mãos inteligentes, as colunas, as abóbodas de berço, cederam o lugar à ruína, ao esquecimento, ao espaço alienado pelo tempo. O refúgio tornou-se a pictura de uma inutilidade, a representação de algo que já não podia ser, o emblema da decadência de todas as obras humanas mesmo das bem-intencionadas. A ruína improdutiva, insalubre, reumática tornou-se no séc. XX um tesouro de um certo tipo de vida humana, o vestígio físico de uma organização pré-burguesa e pré-industrial do espaço comunitário.
Na fase final do séc. XX, praticamente trezentos anos depois do seu abandono, o mosteiro adquire um novo estado cinético, uma nova exterioridade e uma nova subjectividade que o recoloca no mundo como objecto vivo: o Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara a Velha.
No desenho deste novo edifício inscrevem-se muitos elementos da investigação modernista: a evolução criadora do essencialismo geométrico que não mimetiza, que não ilustra mas que ao mesmo tempo consegue estabelecer uma relação narrativa com o lugar, a clareza funcional das partes, a fenomenologia do corpo que sai entrando, que toma consciência da reversibilidade entre o interior construído e o exterior contemplado, vivido. Uma nave longitudinal segmentada, com vastas fenestrações que acentuam a fluidez e não o sólido, o visível e não o escondido como propagação do real no espaço arquitectónico. Dois corpos (ruina+ monumento), (casa+ museu) enfrentam-se e completam-se (ou desfixam-se). O tempo é reconhecível por aquilo que define as diferenças entre estes dois pontos e no fluxo produzido pelo movimento entre essas categorias arquitectónicas o espaço supera a sua condição de veículo, de objecto e “mistura-se com o mundo”.
A motivação temática para a exposição que agora o CAPC organiza neste espaço sob o título de “Espelho” foi a condição inusitada de Santa Clara ter durante três séculos convivido com o seu simétrico reflectido nas margens do Mondego.
O estranhamento perceptivo com que se encarava a presença desta realidade ainda perdura na memória deste espaço. Essa relação entre o objecto e a representação invertida da sua exterioridade, a arquitectura “vendo e sendo vista a existir”, revitalizou contraditoriamente a matéria construída como uma anamnese liquida, expectante, como o espaço de uma vida anterior, terminada cujo duplo “afogado”, como “um salão no fundo de um lago”, era também a marca do incompleto e a invocação de um regresso.
A forma arquitectónica existiu duplamente como congelamento de um metabolismo antropológico—Santa Clara, a ruína, ganhara um carácter indexical, recordando a organização do isolamento comunitário, a hierarquização do espaço humanizado- e como auto-representação na superfície lacustre. O CAPC não podia deixar de revisitar o potencial de ambiguidade associado com esta experiência.
Pedro Pousada, Janeiro de 2012