O ruído dos sonhos
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Jorge Luís Borges, «Arte Poética», em Poemas Escolhidos, Dom Quixote (1985)
Perante um recipiente com água e uma vara imersa, Ptolomeu ou Descartes e outros sábios do olho são assaltados pela estranheza que aí se dá ao sensível. Imóveis num-fora-dela, pensam-na, cristalizada num artificialismo discursivo. Porém, não se lançam num qualquer interior. Não habitam. Na dúvida, não são-com-ela-no-mundo [1], envoltos num estremecimento e assombro.
Em questão, está o mistério da visão, a imponderável dialética do visível. Curiosidade sem dúvida, modo de ver despertado pela exposição O ruído dos sonhos, dando ao sensível, tal como o dá a dissemelhança de coisas no mundo, a diversidade de obras de Miguel Ângelo Rocha, Isabel Madureira Andrade e Russell Floersch.
Diz Sócrates: o olho arrasta o corpo na fuga da caverna, a masmorra da visão onde as sombras e os ecos são carcereiros, em direção à luz que dá a ver Formas imateriais e imutáveis. [2] Entretanto, omite a visão que acontece no movimento do corpo. O ruído dos sonhos é uma manifestação de Formas, porém alheias à metafísica, sem idealismo ou intangibilidade.
Perante estas Formas, a visão acontece sem tautologia, nas espessuras de uma teia de relações entre obra, espaço, corpo, que abre uma dobra, rasga a presença retiniana, e desprende a latência do invisível. Quando o espírito deposita no imaginário um excesso que não está, porém emana da obra, agora extensão do corpo, suplemento encarnado, carne sua. [3] Ser-com estas Formas, habitar segundo um princípio de negatividade, é a dialética de desmontar o sensível, o pensamento, o eu que vê, e se vê, de erguer o sobredeterminado, recriação incessante. [4]
Miguel Ângelo Rocha é um experimentador da experiência, de fazer fazendo, explorando a interdisciplinaridade de materiais e técnicas e instigando a experiência do sempre impreciso, do encontrar procurando, dos ritmos diversos nos movimentos do olho e do corpo, do esvaziar e do resolver do consciente.
Isabel Madureira Andrade trabalha o desenho e a pintura com recurso a uma matriz que encontra ou produz, subjacência com que sonda o aflorar da imagem num gesto indexante próximo da frottage, confrontando a possibilidade do controlo e a imprevisibilidade plástica dos materiais.
Russell Floersch explora a tensão entre memória e esquecimento, numa prática experimental de construção e pintura de modelos escultóricos referentes a um lugar e um estender do seu tempo, e insinua narrativas, gera o arbitrário na ocultação através da tinta, da visualidade de uma ausência.
Pinturas, esculturas, construções, objetos. Potência e dinâmica, olho e mão. Espasmos em expansão e contração, intuição e decisão. Propõem-se sem ilusão ou representação, sem autonomia ou especificidade. São o cair no rasgão aberto, rendição ao incidente. Delírio sem ficção.
A questão não é o que acontece; é, antes, algo acontece. Um espanto. Abalo, choque, perturbação. Um indeterminável. Indizível, inexpressável, inapresentável. Elevação ao limiar em que colidem e convivem a angústia, privação de qualquer retórica e poética referentes ao que acontece, e a volúpia, alívio de algum porvir incerto e ambíguo, fulgor das possibilidades de significação, reconhecível só no acontecimento. [5]
O algo acontece é performance, happening. Fenómeno do corpo em ação, perturbação semântica sem ensaio nem guião; o irrepetível [6] — fatal paradoxo do in-atual. Contingente e precário, um agora enquanto êxtase temporal. É dis-cronia, anacronismo do contemporâneo extemporâneo, descompasso do já-ainda não.[7] É constelação de agoras em reconfiguração permanente. Tempo tão «demasiado originário» quão «demasiado novo», o inatual trava um combate com o devir linear do tempo.[8] O heterocrónico constrói um contra-espaço, espelho opaco. Um fora-do-espaço, existente e localizável no exterior, porém que o neutraliza e recria, uma heterotopia de espectros visíveis.[9]
Ser-com em algum, em qualquer, tempo e lugar; uma certa deficiência na aderência do olho à luz exterior — uma cosmogénese, elenco de alteridades, de simultaneidades e promiscuidades. Limiar do entre, O ruído dos sonhos é a fina membrana onde acontece a cisão do sensível e do ser.
Ricardo Escarduça
[1] Expressão adaptada do termo enunciado por Martin Heidegger, Ser e Tempo (trad. Márcia Schuback), Editora Vozes (2015).
[2] Platão, The Republic, VII, 515b 3–13, 517b 2–3, 518c 5–8 (trad. Tom Griffith), The Press Syndicate of the University of Cambridge (2003).
[3] Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito (trad. Luís Manuel Bernardo), Nova Vega (2018).
[4] Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens (trad. Luís Lima), Orfeu Negro (2017).
[5] Jean-François Lyotard, «The sublime and the avant-guarde», em Documents of contemporary art, Whitechapel Gallery e The MIT Press (2010).
[6] Allan Kaprow, How to make a happening (1966), vinil 12 polegadas, © 2022 Estate of Allan Kaprow. Consultado em: www.primaryinformation.org/files/allan-kaprow-how-to-make-a-happening.pdf
[7] Giorgio Agamben, «What is the contemporary?», em What is an apparatus?, and other essays (trads. David Kishik e Stefan Pedatella), Stanford University Press (2009).
[8] Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens (trad. Luís Lima), Orfeu Negro (2017).
[9] Michel Foucault, «Of other spaces: utopias and heterotopias», em The Visual Culture Reader, Routledge, Taylor and Francis Group (1998).
Miguel Ângelo Rocha (Lisboa, 1964) é um experimentador da experiência, que explora a interdisciplinaridade de materiais e técnicas no tempo do processo no ateliê e instiga o tempo da experiência no espaço expositivo, dando-os ao sempre indeterminado do acaso, aos ritmos diversos nos movimentos do olhar e do corpo, ao esvaziar e ao resolver do consciente.
Isabel Madureira Andrade (Ponta Delgada, 1991) trabalha o desenho e a pintura com origem numa grelha matricial que encontra ou produz, um senso de uterino e subjacência, sondando e ensaiando a emergência da imagem no tempo do gesto indexante da frottage, no qual a possibilidade de controlo colide com a imprevisibilidade plástica dos materiais.
Russell
Floersch (Nova
Iorque, 1960) explora a tensão entre memória e esquecimento, numa prática
experimental de construção e pintura de modelos escultóricos em pequena escala referentes
a um lugar e um estender do seu tempo, e que se constitui como narrativa plástica,
na qual a tinta gera o incidente, ou destino, da ocultação, a visualidade de uma
presença ausente.
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