Passage


“Imperious Caesar, dead and turn’d to clay,
Might stop a hole to keep the wind away:
O, that that earth, which kept the world in awe,
Should patch a wall to expel the winter flaw!”

Shakespeare (Hamlet, Act V, Scene I)

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O trabalho de Pedro Pascoinho parece inspirar o nosso lado mais voyeurista, e é inevitável sentir como se nos encontrássemos a espiar as histórias de alguém. Conseguimos ver, talvez, o sonho de alguém, do artista?, de uma destas personagens, talvez aquela cuja cabeça repousa suavemente sobre um tampo de aspecto duro e desconfortável. Está morto e não se importará. Ou talvez durma sonhando um quotidiano de rostos e corpos, de movimentos por uma noite muito negra que parece fazer sobressair esses espaços, casas, ruínas unidas pela linha do tempo, uma linha que trespassa os quadros, mesmo que não seja sempre visível, uma linha que atravessa todo o trabalho de Pascoinho desde muito cedo. Mas é também como se o artista tivesse, de algum modo, encontrado uma forma de nos mostrar o processo da memória via imagem, matéria e som.

Passage é o nome escolhido para esta exposição a inaugurar no espaço-sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Um nome que sugere, como o artista confirma, a passagem do tempo mostrada através dos rostos e corpos que inquietam o observador, desmanchando qualquer indício de repouso, de imobilidade, que um retrato poderia pressupor. Mesmo a figura mencionada anteriormente, que aparenta dormir (talvez para sempre), invoca eficazmente um corpo em levitação, produto, quiçá, de uma profunda meditação levada a cabo por Pascoinho, acerca da evolução do seu próprio trabalho que insiste na continuidade apurada das suas imagens. O tempo cronológico assinalado através dos vários motivos presentes neste trabalho – as árvores, as linhas, o velho, o novo – associa-se à ruína e ao abandono. Um fim e um começo, morte e regeneração.

Passage é, de acordo com o artista, inspirado igualmente numa passagem ou num excerto de Hamlet, de William Shakespeare, que remete para as cinzas de César e para a forma como estas se materializam imortalizando-se. Se é verdade que o Imperador de Roma enquanto vivo fazia tremer o mundo, agora, morto, pode ajudar a sanar os hiatos e os buracos existentes, protegendo, por exemplo, uma habitação dos tremores do Inverno:

“Morto, César imperial é só barro agora;
Serve p’ra vedar o vento lá de fora.
O que outrora foi do mundo pesadelo
Calafeta muros, poupa-nos do gelo.”[1] 

É neste contexto que podemos entender a peça-instalação “Continuity”, na qual o barro e as cinzas dão lugar a partículas de cor negra prontas a cobrir o rasgão aberto na parede, uma cesura do tempo que a matéria imortal poderá coser e ajudar a sanar, ao mesmo tempo que, escorrendo quase líquida, se transforma ainda em outra coisa. Aqui, alarga-se numa mancha que prende o olhar ao chão, uma poça negra que apetece tocar, enfiar o braço ou a cabeça neste outro buraco produzido, talvez o buraco do coelho de Alice pelo qual podemos alcançar uma outra dimensão, um outro tempo.

E de outro tempo falam-nos as personagens expostas no trabalho de Pascoinho, que toma como modelos figuras retiradas de revistas antigas,  coleccionadas desde há muito, sublinhando o seu interesse pelo passado, por imagens de contornos clássicos que, inscritas no papel pintado e desenhado, perdem de imediato qualquer intenção mais nostálgica que poderiam sugerir. Isto porque estas são figuras intemporais, do antes e do agora, são figuras que nos são familiares porque unidas pela memória colectiva de quem observa. Uma memória colectiva que abarca eventos, imagens e figuras da nossa história como o painel ou o mural retirado do atelier do artista, parece demonstrar. Esta montagem de imagens, fotografias, desenhos, pedaços de pano escuro misturados com páginas de papel e notas escritas, é um apontamento visual revelador da história deste mundo, deste tempo e de outros que fazem parte do processo criativo de Pascoinho e que ajudaram a compor Passage.

O título escolhido alude, pois, a múltiplos significados radicados numa mesma ideia de transição, de movimento, que pode ser temporal (da infância para a adultez, para a velhice), musical ou literária (um excerto de uma determinada obra), ou mesmo uma secção de uma pintura, por exemplo, como encontramos e reconhecemos nos apontamentos do artista e expostos no seu painel/mural.

Desta forma, as personagens e os sítios do artista são matéria do escuro porque produto da sua e da nossa memória, que se nos oferece naturalmente fragmentada, escusa, fugidia, selectiva. Assim se compreendem as opções tomadas por Pascoinho, ao colocar estes corpos e rostos em acções e posições quase oníricas, dando-nos um vislumbre ou um fragmento de um rosto e de um corpo, acções que envolvem a meditação, a reflexão ou o adormecimento, figuras que espreitam e são espreitadas, aparentemente presas num ambiente carregado de segredos e sussurros que a peça sonora de 12 minutos composta pelo artista e inspirada em Olivier Messiaen, realça e vinca, apontando para um lugar sem fim de onde não é possível escapar, de onde talvez não se deseja escapar, apesar da luz eminente percebida através das frestas (“Fissure”) e das linhas que, claras e luminosas, contrastam com a soturnidade emitida pelas formas humanas. E porque há este apelo ao sonho e à memória, os edifícios e as paisagens presentes no trabalho expositivo de Pascoinho são objecto da mesma falha de clareza, um prenúncio da ruína e do fragmento, mas também da destruição. Passagem como um corredor através da violência da história do mundo patente nas imagens seleccionadas do painel/mural ou na cor intensa do telhado de “Extension” que ameaça transbordar os seus limites, um dos poucos contrapontos ao preto e branco da memória, e não isento da mesma carga tensa que trespassa Passage.

Porque na memória há sempre algo que permanece escondido ou escuso, um algo que parece escapar da nossa mente e que pode surgir repentinamente, como por meio de um flash,[2] para desaparecer imediatamente a seguir, algo que parece próximo mas que não é alcançável – um algo que, porventura, estará fora da moldura.

Ana Pires Quintais


[1] Hamlet, W. Shakespeare, p. 199. Lisboa: Editorial Presença. Tradução de José Blanc de Portugal. No original: “Imperious Caeser, dead and turn’d to clay, /Might stop a hole to keep the wind away,/ O, that that earth, which kept the world in awe/ Should patch a wall to expel the winter´s flow!” (Act. V. Sc. I).

[2] Os pontos luminosos que encontramos amiúde nos trabalhos de Pascoinho parecem indiciar precisamente esta ideia.

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reasoning parallel | Pedro Pascoinho, 2016| óleo s/ papel, 160×114 cm

 

“Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”
Lavoisier
“Repetir, repetir, até ser diferente”
Manoel de Barros

 

Se fizesse uma entrevista com uma pergunta apenas ao Pedro Pascoinho, acerca do seu trabalho de pintor – eu, que não sou jornalista para fazer perguntas, nem marketeer competente para fazer campanhas ou carreiras, mas que o conheço como tal há cerca de 20 anos, e que acompanhei de perto a sua vida e obra – talvez lhe perguntasse, com os expectáveis rodeios introdutórios e frases longas (que aceitaria serem inevitáveis numa tentativa de resumo de 20 anos de trabalho e num discurso oral como a entrevista), algo do género:

—  O teu trabalho sempre foi figurativo, começou por ter muitas figuras e histórias, foi depurando como se usasses um zoom, no sentido que foste sempre reduzindo o campo da imagem, digamos, do geral para o particular, mas apesar dessas aparentes diferenças e das classificações imediatas que, por alguma analogia e ânsia de catalogação de algo que nos parece estranho e que nos sentimos inseguros em apreender sem ter um nome, as pessoas foram catalogando como surrealista, pop, clássico, estado novo, Hopper,  Neo Rauch, Borremans e por aí fora… apesar disso, dizia, reparo que sempre deste títulos às obras ou às séries como: Models, Hold icons, Collectors, Art revisions, Under current, The permanence, No future, Sustain, Remain, Emerge, Inside, Unavoidable, Establishment, Alignment, Parallel, Transition, etc, e agora esta exposição no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra intitula-se “Passage” (e enumero tantos, à laia de retrospectiva, para nos lembrar que sempre houve apenas pequenos incrementos, ideias próximas, e um mesmo universo conceptual, mesmo nos trabalhos que eram alvo de catalogações tão diversas, já que ainda não surgiu uma exposição que mostre todas essas obras) e que desde sempre recorreste ao mesmo processo de coleccionar imagens e delas esperar que algum fragmento se imponha como inevitável para o teu trabalho, e que sempre falaste em memória, tempo, passagem, matéria, surgimento, linha cronológica, perfeitamente visíveis para ti quase desde o início e, se algo ia mudando, era a tua percepção do nível de apuramento dos conceitos e a clareza e simplicidade do que pretendias fazer, que inúmeras vezes tive o privilégio de te ouvir explicar, sem nunca nestes 20 anos ter dado por ti sem teres uma ideia clara por trás de cada obra que ias produzindo, o que cimentou uma amizade também fundada na admiração pelo teu saber e coerência, características geradoras de dúvidas mas também do impulso de lhes responderes de modo autêntico.

Feita esta introdução, a pergunta será apenas: Pedro Pascoinho, como te sentes como pintor destas coisas, que decidiste ser e criar?

E imagino uma possível resposta dele mas sem as limitações de pudor sempre impostas pelo discurso directo…:

“Realmente 20 anos já dá para confundir fazer com ser. Contudo, a minha existência separa-se da existência das coisas que fiz na exacta medida em que as coisas que faço se separam das outras coisas que os outros fazem, pelo simples facto que tenho perfeita consciência de que eu, os outros, todo o mundo, incluindo toda a pintura e pensamento, somos feitos da mesma matéria desde sempre e para sempre, mas o que me torna único entre toda a matéria é eu ter existência por via da consciência de que a matéria que me constitui está ligada e animada de maneira distinta, por exemplo, da matéria do chão que piso ou do pincel que agarro, ou da água que bebo, tal como tenho consciência que a minha pintura existe por via dessa distinção consciente da matéria de que se anima, mesmo que nela se veja um corpo semelhante a um corpo, uma memória semelhante a uma memória.

Se eu estivesse sem consciência apurada da minha existência e da existência do meu trabalho, ambos distintos de toda a outra matéria do universo, talvez estivesse preocupado em apenas ouvir a “música pimba” – que é a crítica precipitada, de primeira impressão de quem não conhece o meu trabalho e nem mesmo, talvez, conheça bem as catalogações que usa, e que referiste, como por exemplo Surrealismo, Pop, Hopper ou Borremans, etc – e aí, eu não teria a energia suficiente para fazer apenas e exclusivamente a pintura do Pedro Pascoinho, ou seja, aquela que mais ninguém pode fazer.

Nunca me ocorreu sequer a hipótese de deixar de fazer o que persigo, o detalhe, a formulação mais precisa, que referes quando dizes que fiz e faço zooms, num caminho que considero o meu e que nunca foi guiado pelo que vi fazer a outros, fosse por via da imitação ou da recusa. Não digo de modo nenhum que não seja influenciável, que, com imensa honra, não me sinta filho de uma linhagem de pintores (como por exemplo Jan van Eyck, Vermeer ou Rembrandt), onde bebi muito, conscientemente e inconscientemente, com irmãos em vários tempos, onde devemos ter ido incubar a génese da nossa pintura, tendo cada uma seguido o seu processo fisiológico de evolução, que se repete de indivíduo para indivíduo que herda a mesma genética, como uma aplicação de uma lei natural, que não deixa de produzir indivíduos e personalidades distintas, ainda que com a mesma morfologia. Por vezes, encontramos na linha da história, cientistas que, em sítios diferentes do mundo, estão simultaneamente a encontrar e investigar o mesmo problema e a formular respostas semelhantes, mesmo sem se conhecerem, como se estivessem em comunicação telepática – enfim, isso deve ter um pouco a ver com eles olharem o mundo munidos das mesmas referências – e desenvolverem separadamente um pensamento formado com a mesma genética ou obterem a mesma solução por caminhos diferentes.

Acho já ter a maturidade mínima suficiente para saber o que tenho feito e que já não sou confundível, pelo menos para um olhar atento, apenas com o que herdei ou seleccionei herdar. Esta exposição, “Passage”, que imagino como um olhar quase microscópico sobre a aparição, a revelação fulgurante e primordial do trânsito fluido da matéria, tem no CAPC uma peça com três pinturas e um espelho, com carácter instalatório, que intitulei “This land is yours” e faz exactamente referência ao que recebemos, mesmo que essa herança tenha a sombra de um Pai forte, como por exemplo Deus ou um grande homem. A autonomia que nos torna existentes por direito próprio passa precisamente por aceitar o legado e saber o que fazer com ele, ou seja, de uma forma distintiva, acrescentar-lhe a nossa marca, o nosso caminho, tornando só então a herança verdadeiramente nossa. E sempre que nos debruçamos para ver aquilo em que tornámos a nossa herança, se o tivermos feito de modo consciente, lá estará o rosto do nosso antepassado reflectido, e o nosso reconhecimento respeitoso da nossa linhagem, que não precisámos de abandonar (e menos ainda renegar), só para esconder o espectro da nossa inexistência.

Pelo que, abreviando a resposta, me sinto sempre e exclusivamente atento à matéria do meu processo de trabalho e ao incessante pensamento que desse modo ordeno (ou vice versa) e a tentar sempre fazer o que se me impõe como o que tenho para fazer.”

Enfim, era o que ele talvez me respondesse, se fosse eu… ou o que achei que eu diria… se fosse ele.

Eduardo Rosa