Ciclo Santa Cruz
Olhar uma pintura.
Uma e mais uma e outra vez ainda, desaprender.Aprender a não ver. Partir, ir procurar o sopro raro de uma luz interior, tacteando o silêncio antes que sons e cheiros se extingam, sombras de coisas apenas entrevistas e de outras mais remotas lembradas como se de verdades se tratasse e que, talvez por medo, julgámos por instantes nossas.
Não vos falo. Não saberia dizer-vos como alguns, esses outros que sabem, os lábios movendo-se esquecidos.Caminho, da minha surdez pressinto esse rumor que no meu encalço quereria alisar o desenho do meu andar.
Fui por outras veredas. Já quase desfeitas, pó de um céu que perdeu as lágrimas, o tempo acabando para os meus olhos nesses passos andados. Mas antes, trarei todas as pedras e farei uma casa para nela dizer os nomes deles e os lugares de onde vieram. E também os traços, os reflexos e as cores onde os fui vendo, os das terras mais acima, aqueles do outro lado de todas as águas, alguns de longes onde a noite nasce maior do que a luz.
Não sei como foi o primeiro. Um deve ter sido. Outros, após esse, vieram, alguns chegarão depois, sei-o, vi alinhados por sobre todas as paredes os algarismos do seu tempo e os do meu também. Luz única, a que trazem, ténue, esse quase tudo que são as poucas coisas que sabemos nomear, uma flor, as mãos, aquela árvore, algumas nuvens, uma concha, a infinita clareza de um quadrado negro, uma cabeça de cão na diagonal de um muro, lágrimas num rosto de sangue, um cavalo iluminado de horror. Olhar a pintura.
Em silêncio, chegou isto a mim. Veio de horas de há muito tempo, de lugares e perspectivas quase perfeitas, de cores puras, únicas na sua vastidão muito para além de onde as mãos poderiam chegar e sei agora que é verdade, e que assim ficará, porque um dia uma mulher me disse de seu filho, que este lhe apertara com desespero na sua a mão pequena, e que a si se chegara com a mesma tristeza de certa pintura que haviam visto na cidade onde, dourada, a pedra flutua sobre as águas.
Pedro Cabrita Reis, Lisboa, 12 de Outubro de 2010, já quase de dia.
Santa Cruz
Com Altar Piece #2, de Pedro Cabrita Reis, o CAPC prossegue um ciclo de exposições na cabeceira do Café Santa Cruz, lugar emblemático da baixa coimbrã e ainda hoje um espaço polarizador de muitas sinergias locais.
No lugar do altar, na “cabeça de Cristo”, organizar-se-ão uma série de iniciativas artísticas explorando critica e reflexivamente os protocolos da representação numa sociedade ela própria profundamente iconocrata e marcada por processos de mediação distrativos, escapistas e de crescente ambiguidade semântica.
Num lugar que numa primeira fase possuía um posicionamento monossémico e prescritivo, onde se ancorava a liturgia do divino, os sons, as texturas, os odores, o impacto visual desses momentos, e que pelos percalços, inibições e ansiedades da história grande se foi acomodando a novas funções de que o Café inclusivo, plural, tertualiano de Santa cruz é a mais recente; num lugar com este “excesso de consciência histórica”, o CAPC propõe-se ensaiar um diálogo com a cidade em que vive e fá-lo através do problema artístico (o que é a arte? quando há arte?), problema que nos ùltimos cinquenta anos tem vindo a debater, a tentar clarificar mas também a indeterminar ; a atenção inquiridora, proponente do CAPC perante este problema expressa-se aqui, neste momento inicial, tanto na sua condição de experiência, de algo que é extrínseco, que é da ordem do sujeito que observa, que convive, como na sua condição de forma significante, de obra.
Esta iniciativa do CAPC agrega-se a um tema, os protocolos da representação, que persiste e apura-se no objecto artístico contemporâneo com outros desenlaces práticos.
Com efeito não são só audíveis mas actuantes na actualidade da prática artística as permutações históricas que a revolução simbólica modernista estabeleceu entre uma estética da comparação (,a dramatização narrativa do aparente, a dialéctica entre verosimilhança e artifício, entre segredo e transparência) e uma estética da comparência (do nomeado e do irrepresentável).
Ao destituir o imitatio como o único principio activo do acto de representação (de recolocação no mundo) a cultura artística do século XX, independentemente do paradigma ou periodização que se proponha, abriu para o espectador (mesmo para o mais inexperiente) novas possibilidades de negociação e de mobilização poética na sua relação com o mundo vivido. Essa Arte aproximou mesmo que residualmente o interesse humano do interesse artístico obrigando o sujeito que observa a convalescer do pathos determinista do pitoresco, do “fácil”, do “expectável”, do “semelhante”, obrigando-o para parafrasear Kant, a “audare sapare (ousar saber)”. Se conseguiu ter êxito será outra discussão.
Certo é, contudo e contraditoriamente, que quando nada é reconhecível, quando não só se prolonga o rastreio perceptivo do espectador como se desfamiliariza, se torna estranho, difícil de interpretar aquilo que se dá a ver, a Arte, (e as obras que aqui estarão expostas disso falarão), desenvolve, (aperfeiçoando, criticando, renovando os mecanismo da representação), um esforço histórico para enraizar no mesmo plano conceptual o “Nós” e o “Eles”, isto é, a correlação de forças entre um Eu (eu sou Imago, logo existo) e a diferença do Outro (a persistência de outras antropologias da identidade e da percepção e representação do mundo); a Arte treina-nos a interrogarmos o mundo fora dos nosso fins, das nossas preconcepções. E é esse esforço que aqui na cabeceira de Santa Cruz também se positiva.
Pedro Pousada e Carlos Antunes, Janeiro de 2012