Proxy Wars
Pedro Pousada (1970) é um artista plástico com uma extensa experiência no campo de Desenho contemporâneo. A sua actividade iniciou-se em 1991.É um partidário do comunismo desde 1987. Sabe que a União Soviética não era o paraíso do trabalhadores mas sabe também que era o Estado dos trabalhadores e que faz muita falta ao mundo. Pugna pela socialização da riqueza e do pluralismo democrático (da Empresa à Universidade) que só se pode concretizar com a supremacia da esfera política sobre a esfera económica; defende a gratuitidade no acesso à educação, à saúde e à cultura; está convicto que um dia as cozinheiras de Lénine governarão o mundo e que os filhos dos sapateiros escreverão poesia. Não viajou muito mas falou com muitas pessoas e viu nelas a luta de classes em acção: judeus franco-sionistas, israelitas simpatizantes da Intifada, sérvios, bósnios e croatas a olharem-se como jugoslavos, surfistas antropólogos da Califórnia, economistas guineenses a trabalharem como baby-sitters de casais finlandeses, designers cubanos que combateram em Angola, diplomatas argentinos com tiques aristocráticos, guerrilheiros chilenos desiludidos com o socialismo real, presos políticos, soldados genocidas que falam repetidamente do que fizeram aos “turras”, sectários de todas as cores, mecânicos salazaristas, taxistas de todas as ideologias, arrependidos por terem voltado a Portugal, arrependidos por nunca terem saído, emigrantes e imigrantes, cientistas sem opinião política, pessoas à procura do primeiro emprego e pessoas diversas que não votam e que odeiam a democracia.
Opõe-se ao sionismo e ao apartheid que se ergue na Palestina ocupada com a cumplicidade da diplomacia ocidental. Sabe o que foi a batalha de Cuito Cuanavale e o seu papel na libertação de Nelson Mandela e da África do Sul. Opõe-se às políticas neocoloniais que se tem vindo a definir no Médio Oriente desde a invasão do Líbano em 1982. Recorda-se bem como a doutrina do senhor Zbigniew Brzezinszky incendiou o Afeganistão revolucionário dos anos oitenta e legou ao futuro que agora estamos a viver milhares de mercenários jihadistas, cães de fila das monarquias takfiristas do Golfo Pérsico. Lembra-se da Frente Sandinista e da Frente Farabundo Marti. Considera a Invasão do Iraque de 2003 como o início trágico do séc. XXI e abomina o conceito de Estados falhados e a retórica predadora que a fundamenta. Como os outros seres humanos tem medo de muitas coisas, da morte, do desconhecido, do desemprego, da doença, da amnésia, do desamor, de não saber porque está aqui. Gosta de ensinar e de aprender e na sua actividade de docente e investigador universitário tem publicado artigos científicos no âmbito da teoria da arte e do cruzamento entre cultura artística contemporânea e cultura arquitectónica. Mas quando faz o que faz não pensa que seja artista e tem muitas dúvidas sobre o que isso possa significar nos dias de hoje.
PROXY WARS
Parte Meta-física (formulação de conceitos)
Nos últimos vinte anos (1993-2013) o meu trabalho artístico desenvolveu de um modo intuitivo, assistémico e assimétrico, um conjunto de premissas que posso definir baseando-me em dois excertos. O primeiro é um comentário de Walter Benjamin (Zentralpark, Fragments sur Baudelaire In Charles Baudelaire, un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, Paris : Éditions Payot, 2002, p.228.) sobre a fisiologia poética de Charles Baudelaire: a “raiva de irromper neste mundo para destruir e arruinar as suas criações harmoniosas”, o choque surge, aqui, como uma estratégia para problematizar a condição migrante e milenar do sujeito humano posicionando-se entre o bárbaro (o pior de nós, o monstro, o desconexo e o incompreensível) e o sublime (o inapreensível, o heroísmo do silêncio, a subjectividade esmagada perante a intensidade do objecto, intensidade que não é mais do que o sujeito a revelar-se a si próprio ); o segundo excerto encontrei-o no Fausto do Gothe (ajudado por Mikhail Bulgakov e o seu Margarida e o Mestre) e é o Diabo quem fala respondendo a esta pergunta: ” -Quem és tu, afinal?- Sou parte daquela força que eternamente quer o mal e eternamente quer o bem.” Este projecto expositivo é um cruzamento de narrativas gráficas sobre o edifício contemporâneo neocapitalista e especificamente sobre a naturalização no nosso quotidiano do fundamento biológico da vida- a morte, a destruição do outro, o homem lobo do homem, a desordem como um programa de salvação da ordem instituída. Apresenta-se por isso mesmo como uma crítica artística (entendida aqui como a “negatividade dialéctica” da destruição criadora) à conciliação das classes (o cavalo de Tróia do extermínio) e é um ataque à ideia de intropatia (o explorado contempla o sofrimento do explorador como parte do seu sofrimento, e o explorador na sua estratégia de reprodução e continuidade inventa uma humanidade intrinsecamente diferente na sua mobilidade social mas igual no seu sofrimento e mortalidade); Walter Benjamin definiu este conceito como um factor de enfraquecimento ideológico do dominado em relação ao dominador, daqueles que produzem (e consomem) em relação aqueles que organizam a acumulação por despossessão, dos representados em relação aos representantes (problema central da nossa democracia).
Parte Metodológica (Como faço e auto-reflexividade crítica do que faço)
Na minha obra artística, grande parte dela constituída por desenhos, tem sido recorrente uma metodologia em que o que está desenhado (articulando-se entre o figurativo, o informe e o abstracto) não é exactamente ou apenas aquilo que está desenhado. Parece uma inversão tautológica (o desenho é um desenho que não é apenas uma coisa desenhada, ou o desenho, coisa visível, é apenas uma das camadas de sentido do desenhado) mas tem sido uma preocupação pensar como e se é possível resgatar a narrativa gráfica do ónus dos lugares comuns da cultura de massas (apesar da vizinhança estilística não faço banda desenhada nem estou a contar uma história e quero sobretudo potenciar a semântica do reconhecível e do irreconhecível , as possibilidades de associação e de disrupção do logos e do intuitivo, do hermético e do senso comum). Penso muitas vezes no monólogo do Covil de Kafka quando tento racionalizar a minha prática artística. A dissimulação, o esconderijo, a obsessão da voz interior monomaníaca, prisioneira do mesmo ponto de vista, incapaz de se afstar de si própria,o medo dos inimigos no exterior e no interior, o culto da paliçada, da robinsonada, o terror do isolamento (da imperfeição) mas também o seu conforto (a distância em relação à experiência dos outros). Os meus desenhos têm um lado de perca e de castigo, são uma antologia de modos proprioceptivos de desenhar, de agir graficamente onde o prazer se pode rapidamente transforma r em náusea, cansaço, descrença: sei onde começo na folha, sei que uso o acidente, que arrisco, improviso e manipulo o imprevisto mas muitas vezes sinto que o que prevalece não é tanto o poder do processo, mas as redundâncias e constantes gráficas, a desarmonia compositiva, o pathos do cheio, do excessivo, do ruído. Acumulo e relaciono imagens e a experiência torna-se a anulação, através do verosímil, do familiar, do vivido.
Este Projecto tem também a ambição de aferir como posso extrair desse excesso uma totalidade, uma narrativa que aproxime mais os instrumentos visuais (os desenhos) que utilizo, que mediatizo, do mundo em que vivo. Eu entendo-os como sintomas mas desfocados e destituidos da racionalidade com que representamos o quotidiano como um “ainda mais uma vez” ou um “outra vez”, como um sempre igual que se vai deformando ao ponto em que o fim (a obsolescência, a demência, a velhice, a morte, a finitude e a insatisfação de nos termos apenas a nós próprios) é já um principio. Desenho a pensar nisso, que isto vai acabar e que essa inquietante promessa de que “nada fará sentido” (porque já não somos recordados por quem quer que seja) é a invenção natural, orgânica de um outro sentido em que já não somos necessários.
Assim tento muitas vezes que nos meus desenhos a parte (o pormenor, a biografia do gesto, a mancha autográfica) fale do todo, que o invisível e o complexo sejam metaforizados pelo estereotipo, que o diagrama explique a “associação livre disjuntiva” e em que a “voz interior” (as minhas ideias, a minha cabeça e os seus males) reverbere a história oral dos anónimos (dos muitos anónimos com quem tenho falado para aprender a falar comigo próprio) da nossa modernidade (especificamente nos finais do Século XX Português, colonial, pós-colonial, continental, periférico, europeu). George Simmel afirma no seu texto Ponte e Porta (Brucke und Tur, 1909) que os humanos são a única parte da natureza capaz de separar, dividir um objecto, uma coisa, e que o fazem conceptualmente ainda antes de o fazerem materialmente: o mundo aparece-nos como partes irremediavelmente divididas. A arte talvez (insisto no talvez) seja a tentativa de apaziguar a consciência de que o uno e o indivisível não existem; por outro lado e respondendo dialecticamente à percepção desolada de um mundo dividido e bárbaro a estética entrega-se a um jogo duplo como a estratégia de esquecimento e de ocultação do repugnante mas também como um trabalho (do pensamento, do mundo das ideias e do mundo das formas) sobre o aporético pois não resolvendo os problemas humanos (filosóficos), não sendo um guia para a acção (correctiva, transgressiva) em relação às contradições do viver, às imperfeições do dizer, não possuindo propriedades terapêuticas em relação à fisiologia do desejo, ao insaciável, ao incontrolável, à vertigem da morte, ela, a estética ,como o comunismo, é um espectro que regressa.
Pedro Pousada, Maio de 2015