Ciclo Espelho - 4 x 3
A obra de Pedro Tudela exige-me uma troca não necessariamente coerente mas retroactiva com outros dois praticantes da viagem reversível entre corpo e máquina, entre a produção de sensibilidade por processos tecnológicos inapreensíveis e o “macaquear do tecnicismo” que a monomania artística problemática incessantemente na preciosidade liminar do infantil (do desejo sem culpa) e do esotérico (da aparente seriedade que o incompreensível empresta aos signos estéticos); são dois outros autores, já desaparecidos, que tornaram inteligível mas suas operações e nos produtos daí resultantes (obras, projectos, acções de socialização da diferença e do estranhamento) a possibilidade de se “aproximar do o que não concorda entre si”, a possibilidade de “uma geometria do heteróclito” como refere Michel Foucault noutro contexto. São eles Francis Picaria(1879-1953) e Elezard Lissitzky (1890-1941). (…)
Do primeiro relevo o modo como transformou a obsessão cubista e ontologicamente cezanniana pela “passage” num dispositivo anti-mimético onde o objecto se dissolve, se desfixa num continuum que resolve através da redundância tonal, (e da escassez óptica que lhe está implicada) o problema da representação do “espaço que existe entre as coisas”; o “entre-dois“ como dizia Georges Braque, onde se situa o sujeito em relação ao objecto e estes dois em relação ao mundo que os contém. Refiro-me em concreto à sua pintura do período do grupo de Puteaux, e da amizade com Duchamp e Apollinaire , (e.g, La Source, 1912); pintura onde diferentes camadas tonais de castanho iniciam o espaço pictórico como algo mais do que o incidente figurativo da forma plástica mas refiro-me também às pinturas que realiza em 1913 em Nova Iorque (e.g. La ville de New York aperçue à travers le corps) e onde estabelece uma correspondência entre o óptico e o háptico na experiência espacial ao mesmo tempo que abre o caminho para um recomeço fundador do lugar finito, do lugar da desaparição mas também do reposicionamento da experiência (do “momento presente do passado” como diria Elliot) que é a arte. Onde cabe no aparente anacronismo desta genealogia o trabalho artístico de Pedro Tudela? Não faria mais sentido aproximá-lo de outra nomenclatura derivada de Bruce Nauman ou do angst , do sacrifício e trauma, do Fluxus europeu? Talvez mas essa é a resolução mais fácil do problema e no fundo o que quero acentuar é que o fio do labirinto, onde inicialmente a imagem aparece como a coisificação da alteridade como na rua industrial do poema Zone de Apollinaire, chega ao outro lado, e já não é a relação entre o suporte e superfície da imagem que interessa, a justaposição dos contrastes faz-se agora no espaço da mesma forma que o Cristo ressurecto, o Cristo ícaro do Poema Zone se confronta com o aeroplano: no lugar de saída onde se encontra Pedro Tudela, crença (naquilo que não conseguimos acreditar, no dever ser da arte) e logocentrismo (a quotidianidade do ser em repetição como substituto do universal, do ousar ser) permutamse. À perplexidade perante esse anacronismo respondo que o trabalho de Pedro Tudela cabe na vizinhança metodológica, no modo como substituiu a materialidade do médium pictórico, a tinta, na sua oscilação entre um carácter sólido e líquido, (entre um uso e uma crítica do uso), pela condição inumana e anti-mimética do som; e fez essa substituição, também, para falar desse “espaço que existe entre as coisas” e da acumulação semântica e poética que essa região do estar e da consciência proporciona; o seu corpo de trabalho foi pensando (e problematizando) através do som a escala do corpo no espaço. O som aparece como uma propriedade espacial, como o corredor de um trânsito imaterial entre o visível e o visual; em muitas das experiências a superfície sonora funciona como a dimensão cinética da parte não visível do espaço. Noutras ocasiões a sua obra testa a penetrabilidade do vazio por uma sintaxe feita de silêncio e de não-silêncio. Depois esta vizinhança desloca-se para o unheimlich (o estranho familiar) da tecnologia através dos mecanomorfos produzidos por Picabia durante a Grande Guerra sobretudo em Nova Iorque e de que o seu Parade amoureuse de 1917 é uma imagem forte; consigo relacioná-los, na apropriação, na antropogénese, com o acervo de metaobjectos de Pedro Tudela, formas que criam o seu próprio conteúdo a partir do ponto de vista da produção (e que são o reflexo de uma autonomia criativa que se vincula também nesse outro ser que pratica, reverte e transforma a mimese quotidianamente- aquilo que já fomos e que já não podemos voltar a ser. Um ser cuja realidade externa é o trabalho artístico). E temos outro dos antepassados de Pedro Tudela: Lissitszky que no seu auto-retrato, O Construtor (1924), coloca uma das suas mãos, a sua “mão de macaco” como o dirá”, sobre o seu rosto e nessa sobreposição inventa um novo órgão, o olho-mão, a motricidade ocular que pode falhar porque pensa e pensa para poder compreender os contornos poéticos da imperfeição, do inconclusivo. Esse Lissitzky, dos Prouns, da supremacia do ambíguo, do orgânico, ainda que vestido com roupagens tecnocráticas, vejam-se, nas páginas da revista G, de Hans Richter, as suas inquietações em relação ao maquinismo utilitarista do 1ºGrupo Construtivista reverbera como um “presente diferente” nas máquinas sonoras, nas implantações estereofónicas de Pedro Tudela. Lissitzky reaparece também pelo push and pull entre a condição expectante e participante que atribui nas suas instalações ao espectador; numa carta à sua mulher Sophie Lissitzky-Kupers, e a propósito de um conjunto de fotografias que esta lhe enviara do projecto de Mondrian, “ Salão de Madame B.”, (uma encomenda da coleccionadora Ida Bienert), Lissitzky comentava que este parecia ter erguido uma natureza morta abstracta feita para ser observada pelo buraco da fechadura. Mondrian acentuava na disposição do espaço doméstico um logos onde predominava um controle estético do olhar. As fotografias que Michel Seuphor realizou do atelier parisiense de Mondrian em 1930 reiteram esse incremento do espaço habitado (e utlizado) como suporte pictórico feito para ser totalizado, contemplado a partir de um lugar específico. O autor pre-determina o que vai ser visto, quando e como se procede a essa ocularidade. Em contrapartida os interfaces pictórico-arquitectónicos de Lissitzky exploram a imersividade do espectador; no Kabinett der Abstrakten (1927-28) que construiu no Museu de Hannover, o espectador está dentro da obra a decidir o que vai olhar e a confrontar-se com a assimetria e mobilidade do espaço (na composição e escala dos objectos pictóricos, na materialidade das paredes amovíveis) e as paredes cessaram a sua condição estática como lugares de descanso do pictórico, como afirmara na revista G funcionando como reverberações. As paredes não consolam mas existem em alteridade. As atmosferas sonoras e plásticas com que Pedro Tudela tem vindo a desenvolver a sua relação com o espaço expositivo, são um prolongamento dessa cultura da tentativa e erro onde o todo expositivo é a principal obra do atelier e é, também, a construção de situações (ambíguas, sem nexo, sem utilidade, sem previsibilidade) proporcionadas pela combinação da deslocação (espaço) e da duração (tempo) na profundidade do som.
Pedro Pousada – Coimbra, Março de 2014
Ciclo Espelho
A história de Santa Clara a velha, é a migração de um corpus arquitectónico por diferentes condições de existência, diferentes actualidades: refúgio, casa e teatro de um mundo, estábulo, ruína, imagem, paisagem, monumento, tesouro arqueológico e finalmente laboratório e espaço museológico onde se mediatiza. Santa Clara é de facto um espaço definido pela pluralidade e descontinuidade dos seus fins.
O Mosteiro de Santa Clara ganhou o seu baptismo geriátrico (a velha) por incapacidade avançada; a função desprendeu-se da forma arquitectónica no último quartel do século XVII. E a liturgia deu lugar à pecuária.
Originalmente destinada às Penélopes beirãs, às proprietárias fundiárias (a parte feminina do cume da ordem social vigente) que recusavam um dono e que queriam decidir a economia dos seus bens, Santa Clara, a casa coimbrã das Damas Pobres, construiu-se como uma barreira arquitectónica contra a penetração forçada, contra a brutalidade testamentária do pecado original.
No uso deste edifício como no de tantos outros espaços conventuais, no regulamento do seu quotidiano intramuros, a consciência háptica do humano, a agonia dos limites e das necessidades (a comida, os perfumes, os cheiros, os sons, as febres, o desconforto do corpo em mudança, a menstruação, a fertilidade, a textura da experiência, os breviários, os excessos e as proibições carnais, as missas, a probidade, o egoísmo, o deve e o haver dos segredos pessoais e colectivos, a contabilidade das inúmeras rendas e doações, as obras, os olhares trocados, o ócio) e a renúncia dessa mesma condição humana, a busca de um dever ser mais que natural, a busca do sagrado (o transcendente, a incompletude do presente, o bem que faz o mal e o mal que faz o bem, o sacrifício, a paixão, a luta contra a repetição) foram mutuamente inclusivos.
Nas margens de um rio que os romanos chamavam Munda, claridade, ergueu-se nos finais do séc. XIII um refúgio contra o animalesco, a natureza, o inimigo; a clausura constituiu-se como um prolongamento de vida, como uma moeda de troca exigida pela protecção contra a intrusão androcêntrica, contra o matrimónio coercivo. A viúva de um soberano dedicou-lhe uma nova Igreja e um hospital. Mas esse rio, filho de uma cordilheira glaciar, existia nos interstícios do terreno, nas cavidades subterrâneas e disputando a solidez do terreno fez o mosteiro das Clarissas coimbrãs adquirir um horizonte lagunar. O claustro, as naves do templo, foram imergindo nas cheias do Mondego e o pequeno reino das Damas Pobres foi recalcitrando em diferentes pisos até ao seu abandono. O refúgio, a estética do lugar vivido, a policromia dos azulejos, a cantaria aprofundada por mãos inteligentes, as colunas, as abóbodas de berço, cederam o lugar à ruína, ao esquecimento, ao espaço alienado pelo tempo. O refúgio tornou-se a pictura de uma inutilidade, a representação de algo que já não podia ser, o emblema da decadência de todas as obras humanas mesmo das bem-intencionadas. A ruína improdutiva, insalubre, reumática tornou-se no séc. XX um tesouro de um certo tipo de vida humana, o vestígio físico de uma organização pré-burguesa e pré-industrial do espaço comunitário.
Na fase final do séc. XX, praticamente trezentos anos depois do seu abandono, o mosteiro adquire um novo estado cinético, uma nova exterioridade e uma nova subjectividade que o recoloca no mundo como objecto vivo: o Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara a Velha.
No desenho deste novo edifício inscrevem-se muitos elementos da investigação modernista: a evolução criadora do essencialismo geométrico que não mimetiza, que não ilustra mas que ao mesmo tempo consegue estabelecer uma relação narrativa com o lugar, a clareza funcional das partes, a fenomenologia do corpo que sai entrando, que toma consciência da reversibilidade entre o interior construído e o exterior contemplado, vivido. Uma nave longitudinal segmentada, com vastas fenestrações que acentuam a fluidez e não o sólido, o visível e não o escondido como propagação do real no espaço arquitectónico. Dois corpos (ruina+ monumento), (casa+ museu) enfrentam-se e completam-se (ou desfixam-se). O tempo é reconhecível por aquilo que define as diferenças entre estes dois pontos e no fluxo produzido pelo movimento entre essas categorias arquitectónicas o espaço supera a sua condição de veículo, de objecto e “mistura-se com o mundo”.
A motivação temática para a exposição que agora o CAPC organiza neste espaço sob o título de “Espelho” foi a condição inusitada de Santa Clara ter durante três séculos convivido com o seu simétrico reflectido nas margens do Mondego.
O estranhamento perceptivo com que se encarava a presença desta realidade ainda perdura na memória deste espaço. Essa relação entre o objecto e a representação invertida da sua exterioridade, a arquitectura “vendo e sendo vista a existir”, revitalizou contraditoriamente a matéria construída como uma anamnese liquida, expectante, como o espaço de uma vida anterior, terminada cujo duplo “afogado”, como “um salão no fundo de um lago”, era também a marca do incompleto e a invocação de um regresso.
A forma arquitectónica existiu duplamente como congelamento de um metabolismo antropológico—Santa Clara, a ruína, ganhara um carácter indexical, recordando a organização do isolamento comunitário, a hierarquização do espaço humanizado- e como auto-representação na superfície lacustre. O CAPC não podia deixar de revisitar o potencial de ambiguidade associado com esta experiência.
Pedro Pousada, Janeiro de 2012