Stimmung
“Só é perfeito o homem para quem o mundo é um país estrangeiro.”
Hugo de São Vitor (Teólogo Saxão, século XII)
O paisagismo é, entre muitas outras coisas, o efeito cultural de um conflito entre a necessidade histórica de modernização e a melancolia de uma separação que o fluxo nevrálgico dos boulevards e a burocracia produzira; um conflito, em que a caça, o desporto, os banhos termais, os piqueniques, os passeios pelo campo, o campismo, a naturalização do week-end, constituíam a dimensão mais mundana, mais física. O sujeito, burguês e proprietário (em fuga dos processos de dessacralização, da separação entre ego e totalidade que a revolução política e económica da sua classe inventara), redescobrira a sua animalidade nesses novos hábitos mas necessitava de uma redenção arcádica, de uma compensação estética e o paisagismo pareceu cumprir essa tarefa assumindo-se como a dissonância pictórica entre o pitoresco e o sublime, entre o conforto (e o deleite egoísta) e a tragédia (a sensação da forma natural como a perca de escala, a irrelevância do destino humano). O orgulho da sua obra, das suas realizações e o terror do seu fim e do silêncio indiferente da totalidade parecem alimentar a relação do bom burguês com a paisagem. Ali não há nada de seu, a sua identidade dissolve-se,obscurece-se, perde força posicional e contudo o burguês comove-se, encanta-se; ele quer morbidamente reproduzir a sensação óptica, holística dessa perca; quer substituir os riscos, o perigo, a imprevisibi- lidade do “estar lá”, na falésia junto a um mar tempestuoso, num glaciar alpino, num canyon labiríntico, no estio insalubre de um campo da Toscânia, pelo resguardo do ecrã pictórico. Esse perigo é congelado numa ficção: a paisagem. (…)
Tudo o que disse até agora deriva e é fortalecido pelas imagens que Pedro Vaz nos propõe e pelo modo como as mediatiza no espaço do CAPC; até porque a dimensão aqui não é pitoresca, descritiva, mas analítica, controlada, planeada, num repertório que aproxima o dualismo site/nonsite de Robert Smithson – a combinação de conhecimento abstracto e de experiência existencial do naturalismo de Corot mas também do de Courbet – a empiria do plein air e a coerência compositiva do atelier – neste caso as aventuras pedestres de Pedro Vaz e o seu trabalho na mesa de montagem . A organização da exposição (em estruturas que simulam superfícies da tradição pictórica, telas em madeira, mas que não são mais do que suportes de uma projecção) coloca-nos imediatamente perante o problema da recepção e dos seus automatismos: como o nosso olhar é parcial, incompleto, como somos invariavelmente objectos de um condicionamento em que a nossa subjectividade assimila o dado, (o documento de uma experiência alheia) mas é mantida afastada das diferentes sincronias da esfera do vivido (daquele vivido).
Pedro Pousada – Coimbra, Janeiro de 2014
Com Stimmung, Pedro Vaz retoma o conceito de natureza e paisagem desenvolvido por Georg Simmel (1858-1918) no seu texto seminal “Filosofia da paisagem”. Artista caminhante, tradição moderna de Richard Long ou Hamish Fulton, Pedro Vaz expõe oito projecções vídeo que registam, ou, melhor, que testemunham esse encontro pleno entre o artista e a natureza.
São trabalhos de execução muito lenta, como lento é o tempo que o artista reclama para a sua fruição. Também a montagem foi um processo longo, continuadamente discutido durante mais de um ano, e com uma montagem que se prolongou por 15 intensos dias, afinando cada detalhe, cada ângulo de ataque às obras, a precisa dimensão de cada projecção.
Este pequeno catálogo regista essa singularidade do seu trabalho, porque Pedro Vaz executa uma obra de arte precisamente porque a montanha, ou o rio, toda a natureza se encontra lá, em diálogo consigo, os dois sujeitos de uma acção, o artista mergulhado na natureza, em abismo, – numa série recente, Pedro Vaz literalmente mergulhou numa linha de água em direcção à nascente – como a fotografia que acompanha este texto tautologicamente ilustra.
No Círculo, alimentamos a ideia de continuidade na relação com os artistas. Os artistas crescem com a instituição e permitem que a instituição cresça com eles. É assim há 55 anos e assim continuará a ser. Por tudo isto, acreditamos que este é apenas o primeiro episódio de um encontro que será longo e frutífero e este catálogo serve para testemunhar esse primeiro encontro e tornar público o nosso agradecimento e admiração pelo Pedro Vaz, o seu trabalho, sendo que um não se distingue do outro.
Carlos Antunes