Pinturas e Esculturas Pequenas de 2017 e Ainda Alguns Desenhos de 2009
A ideia de que o espaço nos pode fazer recordar algo que não chega a ser expressamente reconhecido liga-se à hipótese de que os fantasmas presos aos objetos podem segurar memórias que não se conciliam com o que desses objetos e dos seus usos sempre percebemos cognitivamente. Indica-se desse modo uma possibilidade teórica precisa: que a memória guardada pelos espaços humanos pode comportar dimensões que não acompanham as exigências da consciência e da articulação narrativa do tempo humano, por mergulharem mais profundamente no corpo pré-pessoal e assim tornarem impossível estabelecer uma clara racionalização do experienciado como passado, presente ou futuro.
Luís Umbelino, Memória do corpo, tentação do espaço, CAPC, 2015
A exposição Pinturas e esculturas pequenas de 2017 e ainda alguns desenhos de 2009, que agora se concretiza, cumpre um desejo de anos de realizar no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra uma exposição de Patrícia Garrido. A circunstância excecional da mostra ocupar os dois espaços expositivos — o seu edifício sede na rua Castro Matoso, n.º 18 e o espaço no parque de Santa Cruz, Jardim da Sereia — explicita, sem reservas, a relevância desta exposição para o Círculo.
Ao longo dos últimos trinta anos, a artista tem gerido com evidente parcimónia a apresentação pública do seu trabalho, o que lhe tem permitido ter o controlo total da sua produção e ir construindo um corpo íntegro, embora de grande complexidade, multifacetado e plural. Alterna períodos de intensa produtividade com longas pausas, mergulhos em apneia, de extensão imprevisível, na sua esfera íntima e inacessível. São «momentos de crise», como os designa, de reflexão sobre o sentido do que produziu, embora continue sempre a preferir a intuição à erudição explícita. Esta recusa consciente de omnipresença nos territórios visíveis do circo mediático da arte permite-lhe salvaguardar-se da crise temporal na qual estamos todos tomados, «de um tempo atomizado, em que todos os momentos são iguais entre si», na aceção de Byung-Chul Han, sobrepondo a vida contemplativa à vida ativa.[1] Cada reaparição pública da artista, cada nova exposição, é uma recorporização da sua própria obra, um renascimento, uma máscara fúnebre que reapresenta um corpo já distante e omnipresente, que é sempre a relação da artista com a sua obra — no sentido que Hans Belting define na sua antropologia das imagens — e é já, por isso, uma «corporização impura» que reclama o direito à sua autonomia e também a corporização de uma Ideia (idea) nova.[2] O seu trabalho não é de resistência, de género, feminista, panfletário ou de denúncia, embora tenha uma subtil, poderosa e irónica dimensão política. Em obras como Jogos de Cama, de 1994, e especialmente a série O prazer é todo meu, do mesmo ano, armadilha o protocolo social do cumprimento reverencial e submisso, reclamando para si a totalidade do «Prazer». Demonstra uma plena consciência de um mundo dominado pelo paradigma masculino, caucasiano, heterossexual e poderoso política e financeiramente.
A ironia, melhor, a desmontagem dos protocolos e dos consensos — «do que é dado» — é a ferramenta que usa recorrentemente. Quer sejam protocolos de representação, de medida, de linguagem, de poder, de sexualidade, em suma, de significação. A memória oculta e distante dos espaços e dos objetos e a «experiência pré-pessoal» determinam a experiência reificada da obra. São assemblagens — condensações do espaço e, principalmente, condensações do tempo. A arquitetura, na sua dimensão espacial, temporal e de representação, volatiza-se em escultura, sublinhando a performatividade do espaço ou da casa como espaço dramatúrgico, alter ego do seu habitante.
Para esta exposição em que agora se apresenta, Patrícia Garrido decidiu um inesperado regresso à pintura — a sua disciplina de formação académica, cedo preterida pela fotografia, vídeo, escultura e instalação — realizando uma série de pinturas a óleo de pequena e média dimensão: são estranhas paisagens, espessas e crepusculares, «fora do tempo», como as assinala, que convocam e celebram o rigor oficinal da disciplina num alinhamento histórico sem reservas ou pudor. A pintura, sabemo-lo bem, é uma prática disciplinar de continuidade ao longo da sua história, desde a Idade Média e, principalmente, desde o Renascimento. Nenhuma outra disciplina artística resistiu aos apelos de outras práticas derivativas que as afastam de um possível momento matricial. A exposição integra também um conjunto de 14 esculturas de madeira e bronze, que corporizam os objetos de geometria irregular representados nas pinturas, e 35 desenhos inéditos de 2009. A circunstância de este regresso, em plena maturidade disciplinar da artista, ser materializado fazendo uso da pintura a óleo — técnica nunca antes utilizada por si — e escultura de bronze evidencia um novo renascimento, uma recorporização da sua própria obra, como antes referimos, e um «modo de fazer clássico, de voltar ao zero, ao princípio de tudo», como refere com precisão Helena de Freitas no ensaio escrito expressamente para esta exposição, e publicado no respetivo catálogo. Essas pinturas e, principalmente, essas esculturas são formas imperfeitas, seladas, esquifes de um corpo que nunca se revelará e que nunca entenderemos pelos caminhos da palavra. Representam uma qualquer estranheza, «coisas que ainda não sabem o que são (ou se vão ser), pluralidades de sentido em potência, analogias, figurações, divagações», como observa Pedro Pousada no outro ensaio que integra essa mesma publicação. Concluímos manifestando o nosso profundo agradecimento a Patrícia Garrido por se disponibilizar a produzir de raiz uma exposição tão vasta para o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. As 47 pinturas expostas resultam de uma seleção criteriosa da artista a partir de uma base de cerca de 100 obras produzidas para esta exposição. Foi um trabalho obstinado, totalmente concentrado, que pudemos ir acompanhando ao longo do último ano. É este o privilégio de quem priva com os artistas: poder ver em ateliê a progressão do seu trabalho, as suas dúvidas permanentes, as suas convicções inabaláveis, que podem durar uma vida, um ano, um dia ou um segundo.
Carlos Antunes, Corvo, agosto de 2017
[1] Byung-Chul Han (2016), O aroma do tempo – um ensaio sobre a arte da demora. Lisboa: Relógio D´Água.
[2] Hans Belting (2014), Antropologia da imagem. Lisboa: Imago.