Retrato(s) da minha casa
A exposição sobre os Retrato(s) da minha casa que de momento se encontra patente na velha casa-sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), na Rua Castro Matoso, n.º 18, deseja celebrar, entre outras, três casas: a casa-património, a casa-corpo e a casa-mundo. O Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia (dARQ) e o CAPC cuidaram assim da possibilidade de se ocuparem de muitas moradas, oferecendo, sobretudo à cidade, uma diferente perspectiva sobre os retratos dessas três casas. Em três dos pisos da mais antiga morada do CAPC, podem decerto descobrir-se algumas casas que, porventura, todos (re)conhecemos e habitamos, e não apenas fisicamente como corpo. Os seus retratos, acreditamos, irão despertar-nos emoções e lembrar memórias que, julgar-se-iam, idas e tão-só nossas.
Coimbra, 22 de Agosto de 2018
Désirée Pedro e Luís Miguel Correia
Sobre os retratos da vossa casa… que agora também são nossos!1
A exposição sobre os Retrato(s) da minha casa que de momento se encontra patente na velha casa-sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), na Rua Castro Matoso, n.º 18, procede de uma proposta submetida à 20.ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, que, recorde-se, neste ano de 2018 pretendeu celebrar, de entre outras, três casas — como sabemos, a casa-património, a casa-corpo e a casa-mundo. Pressentindo que o programa desta Semana Cultural da UC (se) ocuparia (de) muitas moradas, o Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia (dARQ) e o CAPC cuidaram assim da possibilidade de lhe oferecer, e também à cidade, uma diferente perspectiva sobre o retrato dessas três casas. Decerto, tratava-se de uma grande retrospectiva, vista ao mesmo tempo como uma oportunidade de as descobrir, as ditas três casas, a uma outra escala, porventura mais reduzida e detalhada, que no verso e título de um dos muitos e sugestivos poemas de Ruy Belo a UC desvelou o corpo de reflexão: Oh as casas as casas as casas2. Confiamos que as casas nascem, vivem e morrem, e, quase sempre, enquanto vivas, se distinguem umas das outras, por exemplo, até se distinguem designadamente pelo cheiro… e variam até de sala para sala. À vista deste português nascido em 27 de Fevereiro de 1933, em S. João da Ribeira, no concelho de Rio Maior, igualmente nós, dia-a-dia, nos indagamos sobre as casas que eu fazia em pequeno e, por isso, onde estarei eu hoje em pequeno?; Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?. Afinal, terei eu casa onde reter tudo isto ou serei sempre somente esta instabilidade? Quem de nós esquece que as casas essas parecem estáveis mas são tão frágeis as pobres casas: Oh as casas as casas as casas… mudas testemunhas da vida. Elas morrem não só ao ser demolidas, mas, sobretudo, elas morrem com a morte das pessoas. Indiferentes, as casas de fora olham-nos pelas janelas e, como também nós percebemos, não sabem nada de casas os construtores, os senhorios e os procuradores, por certo aos quais se poderiam juntar tantos outros actores da vida das nossas casas. Do mesmo modo, talvez seja visível que os ricos vivem nos seus palácios, mas a casa dos pobres é todo o mundo. Daí Ruy Belo nos relembrar que os pobres sim têm o conhecimento das casas, os pobres esses conhecem tudo. Nós, como ele, ainda confessamos que amamos as casas, os recantos das casas, que visitamos casas e que apalpamos casas. Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade. Nos lugares (em) que habitamos, sem casas não haveria ruas… as ruas onde passamos pelos outros, mas passamos principalmente por nós. A casa é o abrigo, refúgio e último reduto dessa intimidade. Por natureza, a casa é o lugar que elegemos para guardar as nossas memórias e projectar os nossos sonhos, por mais pequenos que sejam, onde garantidamente o espaço e o tempo nos relacionam com o mundo que nos rodeia, por hoje globalizado, e com aquele outro que pertence à nossa intimidade. Porque na casa fatalmente vivemos, acomodamos e acumulamos essas memórias e sonhos; idem na casa, e à luz das palavras de Ruy Belo, nascemos e havemos de morrer, na casa sofremos, convivemos e amámos, na casa atravessámos as estações, e, por fim, sempre respirámos — ó vida simples problema de respiração… Suspiramos: Oh as casas as casas as casas… Com parte de Ou o Poema Contínuo3, de Herberto Helder, no horizonte, pois falemos de casas como quem fala da sua alma. Poderemos não o celebrar, segundo revela o poeta nascido em 23 de Novembro de 1930 no Funchal, entre um incêndio, junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza. Conquanto o quadro seja outro, procurámos que os inconfundíveis espaços da casa-mãe do CAPC acolhessem a intimidade de certas casas, cujos singulares retratos nos foram generosamente cedidos pelos seus moradores… e que agora também são nossos!
Em três dos pisos da mais antiga morada do CAPC, percorreremos assim algumas casas que invariavelmente todos (re)conhecemos e habitamos, e não apenas fisicamente como corpo. Os seus retratos, acreditamos, irão despertar-nos emoções e lembrar memórias que, julgar-se-iam, idas e tão-só nossas. Por esta razão, cremos que tais retratos da intimidade agora também são nossos. Quiçá se possam, afinal, observar como casas-patrimónios. Naturalmente se conclui que não as contemplámos como mero corpo material, importou-nos sobremodo cede-las como um lugar de apropriação e vivência pessoais. Em qual lugar cada um dos que as visite possa encontrar um espaço seu. Foi neste sentido instigados pelo desejo de habitar algumas dessas casas do mundo real ou do mundo sonhado que, de forma inadvertida, tomámos a liberdade de desafiar um conjunto de pessoas pertencentes a diferentes áreas do saber para connosco partilharem as suas casas, as físicas e as das memórias. Os retratos em exibição no CAPC são, por conseguinte, uma rara fresta aberta para a casa de cada um dos nossos convidados, que, reiteramos, em boa altura tiveram a bondade de nos deixar espreitar e, por vezes, também entrar. Porque as memórias se guardam, aguardamos que estes retrato(s) da minha casa possam determinar outros retratos.
São vinte e uma as casas que se expõem na intimidade da casa do CAPC: OIKOLÓGIO, de António Belém Lima; Polka Dot Brain, de António Olaio; Whose ‘Head Full of Houses’?, de Bruno Gil; S/título (fragmentos da casa), de Carlos Antunes; As Casas de Lina, de Gonçalo Canto Moniz; o desafogamento em contagem crescente, de Joana Monteiro; Stig Dagerman, A nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer, edição VS., Lisboa, 2018/Henry Miller, Viragem aos Oitenta, edição VS., Lisboa, no prelo/T. S. Eliot, Prufrock e Outras Observações, edição VS., Lisboa, no prelo, de João Bicker; Casa Corpo, de João Mendes Ribeiro; S/título, de Joaquim Almeida; SP Copain, de Jorge Figueira; Homeless Town, de José António Bandeirinha; Um quarto é o início da arquitectura, de José Cabral Dias; Hotel Lisboa #1 e #2, de José Maçãs de Carvalho; Arquivo Parcial de Objectos Correntes em Gestaço, de Lizá Defossez Ramalho & Artur Rebelo — R2; Ulisses, de Luís Quintais; What’s In My Bag?, de Maria Gambina; Atmosferas, de Maria Milano; a casa de julho e agosto, de Paulo Seco; A minha casa nos Açores, de Pedro Maurício Borges; The Unknown House, de Pedro Pousada; Retratos da minha casa: livro para pintar, de Teresa Pais.
1 Este texto não segue a grafia do recente Acordo Ortográfico.
2 Belo, Ruy (2000). Todos os Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim.
3 Helder, Herberto (2001). Ou o Poema Contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim.
Coimbra, 22 de Agosto de 2018
Désirée Pedro e Luís Miguel Correia