Ciclo Santa Cruz


Do invisível

«A face interior IV» é um vestígio. Chafes é um escultor do invisível. O que vemos – o visível, pois – são vestígios, marcas. Trata-se de um artista que nos leva a contemplar a possibilidade do invisível de que o «interior» é tradução. Três aspectos merecem comentário. Em primeiro lugar, a recursividade entre o invisível e o visível, entre o interior e o exterior, que Chafes opera. Melhor seria dizer que Chafes traduz. Ele reclama para si a figura do «anjo» como tradutor ou mediador dessa possibilidade do invisível. Em segundo lugar, a dimensão distribuída do seu trabalho escultórico: Chafes está a esculpir um único objecto cujos contornos são de improvável acesso. Qualquer termo da sua oeuvre é um indício – um vestígio – de algo que não sabemos o que é (que jamais vamos saber o que é) e que se desdobra continuamente. Um objecto distribuído. O seu trabalho é, contrariamente àquilo que se poderá pensar, uma das emblematizações mais poderosas que conheço do moderno onde esta dimensão distribuída é inegável (lembro-me de Duchamp, e seria interessante pensar Chafes em confronto com Duchamp, pese embora tratar-se de um exercício que comporta inúmeros riscos). Em terceiro lugar, reafirmaria aqui o lado vestigial de que parto. Os objectos de que se compõe esse objecto maior de contornos improváveis (a clave metafísica do seu trabalho) são vestígios de uma passagem. A passagem do invisível (talvez de uma sombra, talvez de um vazio). As formas que se contemplam (e que se territorializam nestes artefactos de uma opacidade sem concessões) são exuviae, isto é, partes de um corpo, partes abandonadas de um corpo. Imaginamos então uma criatura – uma entidade orgânica que se vai libertando, ciclicamente, de fragmentos (pele, sangue, penas, outros). Tudo o que vemos são esses fragmentos. Tudo o que temos são fragmentos desse corpo do invisível que se metamorfoseia sem cessar e que a inteligência escultória de Chafes se permite mapear.

Luís Quintais, Janeiro de 2011

Rui Chafes_A face anterior IV_1999

Rui Chafes |  A Face Interior IV, 1999 | ferro | Instalação da obra no Café Santa Cruz, Coimbra

 

Território e Acção

Inscreve-se este novo ciclo no programa de estratégias que se endereçam à sociedade civil, que passam por posicionar algumas das actividades do CAPC em lugares da cidade onde haja uma maior circulação demográfica; pretende-se especificamente captar a atenção daqueles que não frequentam habitualmente o CAPC ou sequer conhecem o seu papel na produção e divulgação da produção artística contemporânea e desse modo socializar a mais-valia artística e simbólica que se concretiza nos diferentes espaços do CAPC (CAPC-Sereia, CAPC-Sede). De espaço cultural expectante que aguarda os seus espectadores, os seus visitantes, de espaço de representação do campo artístico contemporâneo o CAPC assumiria um contrato social com a cidadania anónima de Coimbra, realizaria uma migração dos seus conteúdos para o círculo da Civita Augescens, isto é para o interior dinâmico de Coimbra, para a sua capacidade de recepção e acolhimento dos outros, para a cultura da plurietnicidade e da supranacionalidade que definem o esforço desta urbe em se afastar do declínio demográfico e económico.

É o CAPC a descer à cidade, inquirindo e desconcertando os cidadãos, mobilizando o quotidiano, promovendo a capacidade de recepção crítica. O ciclo geral Território e acção será constituído por quatro ciclos: Santa Cruz, Espelho, Linha defensiva do Mondego e Link.

 

Santa Cruz

O CAPC inicia com a peça escultórica “A face interior IV” de Rui Chafes um ciclo de exposições na cabeceira do Café Santa Cruz, lugar emblemático da baixa coimbrã e ainda hoje um espaço polarizador de muitas sinergias locais.

No lugar do altar, na “cabeça de Cristo”, organizar-se-ão uma série de iniciativas artísticas explorando critica e reflexivamente os protocolos da representação numa sociedade ela própria profundamente iconocrata e marcada por processos de mediação distrativos, escapistas e de crescente ambiguidade semântica.

Num lugar que numa primeira fase possuía um posicionamento monossémico e prescritivo, onde se ancorava a liturgia do divino, os sons, as texturas, os odores, o impacto visual desses momentos, e que pelos percalços, inibições e ansiedades da história grande se foi acomodando a novas funções de que o Café inclusivo, plural, tertualiano de Santa cruz é a mais recente; num lugar com este “excesso de consciência histórica”, o CAPC propõe-se ensaiar um diálogo com a cidade em que vive e fá-lo através do problema artístico (o que é a arte? quando há arte?), problema que nos ùltimos cinquenta anos tem vindo a debater, a tentar clarificar mas também a indeterminar ; a atenção inquiridora, proponente do CAPC perante este problema expressa-se aqui, neste momento inicial, tanto na sua condição de experiência, de algo que é extrínseco, que é da ordem do sujeito que observa, que convive, como na sua condição de forma significante, de obra.

Esta iniciativa do CAPC agrega-se a um tema, os protocolos da representação, que persiste e apura-se no objecto artístico contemporâneo com outros desenlaces práticos.

Com efeito não são só audíveis mas actuantes na actualidade da prática artística as permutações históricas que a revolução simbólica modernista estabeleceu entre uma estética da comparação (,a dramatização narrativa do aparente, a dialéctica entre verosimilhança e artifício, entre segredo e transparência) e uma estética da comparência (do nomeado e do irrepresentável).

Ao destituir o imitatio como o único principio activo do acto de representação (de recolocação no mundo) a cultura artística do século XX, independentemente do paradigma ou periodização que se proponha, abriu para o espectador (mesmo para o mais inexperiente) novas possibilidades de negociação e de mobilização poética na sua relação com o mundo vivido. Essa Arte aproximou mesmo que residualmente o interesse humano do interesse artístico obrigando o sujeito que observa a convalescer do pathos determinista do pitoresco, do “fácil”, do “expectável”, do “semelhante”, obrigando-o para parafrasear Kant, a “audare sapare (ousar saber)”. Se conseguiu ter êxito será outra discussão.

Certo é, contudo e contraditoriamente, que quando nada é reconhecível, quando não só se prolonga o rastreio perceptivo do espectador como se desfamiliariza, se torna estranho, difícil de interpretar aquilo que se dá a ver, a Arte, (e as obras que aqui estarão expostas disso falarão), desenvolve, (aperfeiçoando, criticando, renovando os mecanismo da representação), um esforço histórico para enraizar no mesmo plano conceptual o “Nós” e o “Eles”, isto é, a correlação de forças entre um Eu (eu sou Imago, logo existo) e a diferença do Outro (a persistência de outras antropologias da identidade e da percepção e representação do mundo); a Arte treina-nos a interrogarmos o mundo fora dos nosso fins, das nossas preconcepções. E é esse esforço que aqui na cabeceira de Santa Cruz também se positiva.

Pedro Pousada e Carlos Antunes, Janeiro de 2012