Vista para o parque

A exposição integra um conjunto de desenhos e esculturas de Rui Sanches. As obras foram escolhidas tendo em conta as características físicas do espaço: três compartimentos iguais, longos, com uma grande janela virada para o parque, o que permite a vista do interior para o exterior e, em alternativa, uma visão quase cenográfica do exterior para o interior das salas de exposição.

Rui Sanches
A obra de Rui Sanches (Lisboa, 1954) tem vindo a desenvolver-se, desde a primeira exposição individual em 1984, como uma extensa reflexão em torno de três questões fundamentais: a relação da criação moderna
e contemporânea com a história e os diferentes fantasmas que nela permanentemente se insinuam; a possibilidade de pensar o ponto de vista do espectador; e a relação da arte com o mundo — seja por processos de ressignificação, de relação com o contexto, de citação ou paráfrase de obras referenciais da história da pintura.
Rui Sanches, que começou o seu percurso pela pintura, no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa, veio a centrar-se na escultura a partir da sua formação no Goldsmiths’ College, em Londres (onde estudou entre 1977 e 1980), interesse reafirmado nos dois anos seguintes em que estudou na universidade de Yale, nos estados unidos. Manteve, no entanto, uma prática sistemática e reiterada de desenho. esta exposição coloca em confronto o trabalho escultórico e a a prática do desenho e retoma o caminho híbrido entre ambos, que se afirmou desde o tempo das primeiras esculturas/desenho que realizou enquanto estudante em Londres, em 1977/8.
O percurso que a exposição propõe confronta momentos diversos do trabalho de Sanches: por um lado, retoma as obras escultóricas que estabelecem um elo entre uma determinada conceção geológica do processo escultórico, ligando-o a uma corporalidade que é sempre convocada, e o diálogo com a arquitetura ou, em termos mais amplos, com a racionalidade do espaço.
No trabalho de Rui Sanches, esse triângulo (entre a modulação de uma orografia especulativa, a evocação de formas corporais e a racionalidade do espaço arquitetónico) tem estado sempre presente. De facto, esse triângulo corresponde a uma abordagem deliberada da indagação sobre o que pode determinar a prática da escultura. No seu percurso, a pesquisa acerca da relação entre a evocação ancestral e escatológica do corpo inerente à tradição fúnebre e celebratória da escultura liga-se à possibilidade de entender o espaço como uma declinação corporal, tão racionalmente desenhada — numa tradição que procura na herança do século XVIII — como fisicamente segregada. Por isso é que, repetidamente, se tem abordado o trabalho de Rui Sanches como um permanente diálogo entre a organicidade e a racionalidade construída da forma. No entanto, esta ponte que o artista desenha é bastante mais ampla, uma vez que transporta para a superfície da relação com o espectador
um espectro muito mais amplo de interrogações e diálogos, implicando a relação com a imagem — e com essa máquina histórica de produção imagética que é a pintura —, a posição do espectador, que, móvel, gera sempre pontos de vista, e a questão da representação.Inerente ao seu trabalho está, então, a pergunta sobre a natureza do artístico enquanto processo de representação (por imagens, objetos, corpos, ações) e a imanência na qual reside a possibilidade da arte: não há qualquer transcendência em arte que não nasça de uma aguda imanência, nem há conceito que não esteja ancorado na possibilidade física da sua fenomenologia. É assim, então, que a materialidade das suas obras, o seu carácter físico e contido, se reporta muitas vezes à condição háptica e impossível da escultura que não pode ser tocada e que, portanto, é percecionada como imagem. No entanto, se assim é, então as suas entidades tridimensionais mergulham na história das imagens artísticas — são esculturas votadas ao toque que não pode ser cumprido, possuem a sua erótica escondida na sua relação imagética.
Nesse sentido, a situação física e arquitetónica do CAPC serve magistralmente esse propósito: é uma montra e um mecanismo arquitetónico de produção de imagens, produz perspetivas frontais que se abrem para o Jardim da Sereia, mas permitem a circulação, fazem também ver o revés e transformam o Jardim num cenário. A paisagem adquire aqui o pitoresco que fundamenta a escultura, porque se transforma em moldura, em quadro no qual o corpo (da obra e do espectador) pode encontrar o seu lugar como figura.
Por fim, esta exposição dedica-se, nos desenhos que constroem pontos de fuga e quadros dentro de quadros, nos desenhos escultóricos nas paredes e nas esculturas que povoam o espaço, a entender a relação entre o fundo e a figura, sabendo que o primeiro tanto pode ser o desenho romântico do jardim como o desenho arquitetónico e o segundo é tanto o ponto gravitacional da escultura como o corpo que nela se reconhece e, em torno dela, se define.
Delfim Sardo