Linha d'Água | Ciclo Espelho


Linha d’Água 

A água é elemento indissociável da história do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha.

Foi o avanço das águas do Mondego que lenta e progressivamente ditou o seu abandono. Outrora refúgio, durante quase três séculos, ruína.

Quando, em finais do séc. XX, se entendeu recuperar e requalificar este espaço, com a criação do Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, fragmentos da cantaria (decorativa e funcional) do velho edifício foram dispostos e expostos sob a nova construção.

Entre estes achados arqueológicos está diversa cantaria outrora usada para recolha e aproveitamento das águas pluviais, desprovida agora de funcionalidade, memória de algo que já não é. Ao simular (replicar) por momentos a sua anterior função, ainda que vertendo sobre eles não água mas pasta de papel, Rita Gaspar Vieira foi tornando visível a sua forma, os seus atributos e as cicatrizes provocadas pelo uso e pelo tempo.

A posterior deslocação do molde-desenho para colocação no interior do espaço-museu e aí, a sua exposição com recurso a apetrechos modernos de semelhante cariz utilitário, conferem à peça valor acrescido enquanto registo das características do modelo mas também, como sempre se espera que aconteça nestes fenómenos de recontextualização museológica, enquanto elemento evocativo de uma série de materiais e procedimentos esquecidos e alienados mas merecedores de atenção e interpretação renovadas.

Acontece com o molde-desenho no museu como com a peça de cantaria no rés-do-chão. A transcrição em contextos díspares do original sustenta, fomenta e estimula o potencial crítico e reflexivo do objecto apresentado.

Esta estranheza cresce pela utilização do material-papel que replica e magnifica com acrescida exactidão e sensibilidade as características do modelo original.

Curioso é também que os procedimentos e processos utilizados por Rita Gaspar Vieira em Linha d’Água façam jus à duplicidade e ao potencial mimético evocados pelo título deste ciclo de exposições: Espelho.

Andreia Poças, Maio de 2014

Imagem do círculo da exposição Linha d'Água | Rita Gaspar Vieira

Imagem do círculo da exposição Linha d’Água | Rita Gaspar Vieira

Ciclo Espelho

A história de Santa Clara a velha, é a migração de um corpus arquitectónico por diferentes condições de existência, diferentes actualidades: refúgio, casa e teatro de um mundo, estábulo, ruína, imagem, paisagem, monumento, tesouro arqueológico e finalmente laboratório e espaço museológico onde se mediatiza. Santa Clara é de facto um espaço definido pela pluralidade e descontinuidade dos seus fins.

O Mosteiro de Santa Clara ganhou o seu baptismo geriátrico (a velha) por incapacidade avançada; a função desprendeu-se da forma arquitectónica no último quartel do século XVII. E a liturgia deu lugar à pecuária.

Originalmente destinada às Penélopes beirãs, às proprietárias fundiárias (a parte feminina do cume da ordem social vigente) que recusavam um dono e que queriam decidir a economia dos seus bens, Santa Clara, a casa coimbrã das Damas Pobres, construiu-se como uma barreira arquitectónica contra a penetração forçada, contra a brutalidade testamentária do pecado original.

No uso deste edifício como no de tantos outros espaços conventuais, no regulamento do seu quotidiano intramuros, a consciência háptica do humano, a agonia dos limites e das necessidades (a comida, os perfumes, os cheiros, os sons, as febres, o desconforto do corpo em mudança, a menstruação, a fertilidade, a textura da experiência, os breviários, os excessos e as proibições carnais, as missas, a probidade, o egoísmo, o deve e o haver dos segredos pessoais e colectivos, a contabilidade das inúmeras rendas e doações, as obras, os olhares trocados, o ócio) e a renúncia dessa mesma condição humana, a busca de um dever ser mais que natural, a busca do sagrado (o transcendente, a incompletude do presente, o bem que faz o mal e o mal que faz o bem, o sacrifício, a paixão, a luta contra a repetição) foram mutuamente inclusivos.

Nas margens de um rio que os romanos chamavam Munda, claridade, ergueu-se nos finais do séc. XIII um refúgio contra o animalesco, a natureza, o inimigo; a clausura constituiu-se como um prolongamento de vida, como uma moeda de troca exigida pela protecção contra a intrusão androcêntrica, contra o matrimónio coercivo. A viúva de um soberano dedicou-lhe uma nova Igreja e um hospital. Mas esse rio, filho de uma cordilheira glaciar, existia nos interstícios do terreno, nas cavidades subterrâneas e disputando a solidez do terreno fez o mosteiro das Clarissas coimbrãs adquirir um horizonte lagunar. O claustro, as naves do templo, foram imergindo nas cheias do Mondego e o pequeno reino das Damas Pobres foi recalcitrando em diferentes pisos até ao seu abandono. O refúgio, a estética do lugar vivido, a policromia dos azulejos, a cantaria aprofundada por mãos inteligentes, as colunas, as abóbodas de berço, cederam o lugar à ruína, ao esquecimento, ao espaço alienado pelo tempo. O refúgio tornou-se a pictura de uma inutilidade, a representação de algo que já não podia ser, o emblema da decadência de todas as obras humanas mesmo das bem-intencionadas. A ruína improdutiva, insalubre, reumática tornou-se no séc. XX um tesouro de um certo tipo de vida humana, o vestígio físico de uma organização pré-burguesa e pré-industrial do espaço comunitário.

Na fase final do séc. XX, praticamente trezentos anos depois do seu abandono, o mosteiro adquire um novo estado cinético, uma nova exterioridade e uma nova subjectividade que o recoloca no mundo como objecto vivo: o Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara a Velha.

No desenho deste novo edifício inscrevem-se muitos elementos da investigação modernista: a evolução criadora do essencialismo geométrico que não mimetiza, que não ilustra mas que ao mesmo tempo consegue estabelecer uma relação narrativa com o lugar, a clareza funcional das partes, a fenomenologia do corpo que sai entrando, que toma consciência da reversibilidade entre o interior construído e o exterior contemplado, vivido. Uma nave longitudinal segmentada, com vastas fenestrações que acentuam a fluidez e não o sólido, o visível e não o escondido como propagação do real no espaço arquitectónico. Dois corpos (ruina+ monumento), (casa+ museu) enfrentam-se e completam-se (ou desfixam-se). O tempo é reconhecível por aquilo que define as diferenças entre estes dois pontos e no fluxo produzido pelo movimento entre essas categorias arquitectónicas o espaço supera a sua condição de veículo, de objecto e “mistura-se com o mundo”.

A motivação temática para a exposição que agora o CAPC organiza neste espaço sob o título de “Espelho” foi a condição inusitada de Santa Clara ter durante três séculos convivido com o seu simétrico reflectido nas margens do Mondego.

O estranhamento perceptivo com que se encarava a presença desta realidade ainda perdura na memória deste espaço. Essa relação entre o objecto e a representação invertida da sua exterioridade, a arquitectura “vendo e sendo vista a existir”, revitalizou contraditoriamente a matéria construída como uma anamnese liquida, expectante, como o espaço de uma vida anterior, terminada cujo duplo “afogado”, como “um salão no fundo de um lago”, era também a marca do incompleto e a invocação de um regresso.

A forma arquitectónica existiu duplamente como congelamento de um metabolismo antropológico—Santa Clara, a ruína, ganhara um carácter indexical, recordando a organização do isolamento comunitário, a hierarquização do espaço humanizado- e como auto-representação na superfície lacustre. O CAPC não podia deixar de revisitar o potencial de ambiguidade associado com esta experiência.

Pedro Pousada, Janeiro de 2012