Um Ateliê, uma Fábrica e uma Sala de Exposição – Nem sempre por esta ordem


Imaterialidade e Autoria

Para Nuno Sousa Vieira não pode haver ARTE sem exposição (exposições) nestes termos: o da impossibilidade da EXPOSIÇÃO, precisamente. Ora, quando dizemos que a arte é a exposição (ou, para simplificarmos, a exposição é uma “exposição de obras de arte”), temos de ter em conta que esta coisa chamada “exposição” é sobretudo uma interrogação: portanto, como expor uma obra de arte se ela é intrinsecamente imaterial, nem visível nem invisível, mas algo que temos de ser nós a construir mental e formalmente?

Entretanto, à materialidade da obra temos de acrescentar o exercício da memória. Como na lenda de Parsifal a primeira vez que lhe foi mostrado o Graal (indiferente ficou ao “espectáculo”/ritual), de nada nos serve sermos espectadores da obra (ou seu fragmento) que está à nossa frente: pode não estar lá nada, pode estar algo que remete para uma obra verdadeiramente existente mas que não vemos porque apenas temos acesso a um texto descritivo, pode enfim lá estar, aqui estar diante de nós, uma remissão para um outro lugar ou uma outra exposição.

Se não vimos, há pouco no Pavilhão Branco do Museu da Cidade (Lisboa), Somos nós que mudamos quando tomamos efectivamente conhecimento do outro, ou, antes (2010, Gal. Graça Brandão), 3ª a Sábado, das 11h às 20h, título que é uma mise-en-abîme, pois é o horário do local da exposição que titula a proposta, isto é, a galeria “aberta” está dentro da galeria fechada (separada da rua) e aberta (acessível, contudo)… Note-se que este “fechada” e “aberta” é algo muito significativo, pois muitas obras do autor consistem na remoção, transporte, recolocação, transfiguração de portas e janelas. Se não vimos algo já ocorrido (outras exposições do autor), como eu dizia, tudo ou nada pode estar perdido. Ou seja, se vimos relacionamos o presente com o que sabemos do passado, se não vimos tomamos consciência de que a obra não coincide com o apresentado, e aí é nosso dever, na exposição, pensarmos no que é “arte”, porque esta definição que construímos é parte daquilo que é ser “espectador”.

Então, nós estamos no espaço, as paredes e vidraças do espaço expositivo também aqui estão, mas a obra pode não estar (Museu da Cidade): isso significa que a obra, a arte, é o OUTRO de que nos fala abundantemente o autor.

Diz-nos Derrida que a pergunta essencial sobre o Ser (o que é existir?, o que é o Nada?) está demasiadamente condicionada pela presença de algo no presente, ou seja, pelo que vemos no momento, e essencial não é forçosamente essa “presença do presente”. A esta outra realidade se chama de OUTRO: temos de ser capazes de divisar ou perceber a existência do OUTRO, pois só desse modo mudamos. Tem razão o autor, sim, mudamos quando tomamos consciência do outro. E mudamos de criatura passiva na exposição para a condição de espectador, que perscruta, acerca-se, revolta-se ou delicia-se…

A arte é o OUTRO, porque em Platão é incapaz de produzir ou transmitir “verdade” e no romantismo é mesmo a única via de acesso à verdade. Ora, aquilo que “não é” (verdade) e ao mesmo tempo “é” (verdade), tem de se resolver dialecticamente como coisa do “espírito”, embora este seja (paradoxalmente) aquilo que descarna o espaço e o tempo: toda a obra do autor tem por tema a criação artística através da memória do que foi o seu ateliê (uma antiga fábrica de plásticos) e dos objectos-fantasmas que o povoam.

O último projecto individual de Nuno Sousa Vieira decorreu em dois espaços ao mesmo tempo (G. Graça Brandão e Museu Anastácio Gonçalves): as obras de um lado remetiam para o outro (ao mesmo tempo, repito). Agora estas obras remetem para obras e propostas de outros tempos (desde 2010). Imaterializamo-nos, vamos até ao passado e deste em diante. Mudamos, portanto. De certo modo, passamos de espectadores a autores.

Carlos Vidal, Maio 2013

181250_527085207356188_896474365_n

Exposição Um Ateliê, uma Fábrica e uma Sala de Exposição – Nem sempre por esta ordem, no Círculo Sereia

 

316275_527085214022854_689808237_n

Exposição Um Ateliê, uma Fábrica e uma Sala de Exposição – Nem sempre por esta ordem, no Círculo Sereia

 

Gridded Wall

Presenciamos uma “interferência autoral” num espaço que há muito se emancipou dos seus autores ganhando a prática quotidiana de um lugar (o CAPC–Sereia). Uma interferência que pressiona-me a rever o que significa erguer um muro; olhar para ele é experimentar num estado ainda não imersivo e hipnótico, o efeito de uma ocupação, que preenche e anula a amplitude dos gestos; esta experiência situa-se, portanto, no limiar entre a técnica (o saber erguer paredes, verdadeiras ou imaginadas) e a arte (o muro como ideia e como experiência de todos os muros e de algo mais); esta experiência coloca num estado de privação o raum (o espaço) que está dentro de um quotidiano. Suspende-se a ideia de continuidade.

O carácter construtivo só conhece um lema: criar espaço, apenas uma actividade: preencher. Aqui inverto os termos de Walter Benjamin e completo-os com Goethe que nos diz que “de modo a que algo apareça tem que se desagregar do todo”. Começo com esta dialéctica entre plenitude e separação porque este pode ser o tropismo de Nuno Sousa Vieira ao nos colocar diante de uma estrutura parietal que resulta da deslocação fictícia da parte posterior do CAPC para a entrada do mesmo. (…)

Pedro Pousada

954636_527085090689533_295211071_n

Exposição Um Ateliê, uma Fábrica e uma Sala de Exposição – Nem sempre por esta ordem, no Círculo Sereia

Captura de ecrã 2016-01-26, às 15.29.15

(2 – Texto)

Um Ateliê, uma Fábrica e uma Sala de Exposição – Nem sempre por esta ordem. 

Os ateliês já não existem, pelo menos no meu caso. Ou melhor, existem espaços de trabalho e eu sou o ateliê. O meu ateliê desloca-se, não porque seja uma edificação móvel, mas por ser uma pessoa, com uma existência em movimento. O meu ateliê sou eu. Foi o Daniel que me disse, não me disse bem assim, ou pelo menos, não entendi que ele mo tenha dito tão claramente mas, no fundo, acredito que era o que ele me queria dizer.

Os ateliês já não existem, fazem parte de um imaginário onde os artistas eram criadores, com edificações isoladas do mundo, isoladas não quer dizer nem à margem, nem fora do mundo, antes pelo contrário, os ateliês eram lugares quase sagrados que recebiam e interpretavam as questões do mundo. Jackson tinha uma casa, dormia, comia e trabalhava lá dentro, numa das divisões, ou em todas consoante as necessidades. No entanto, houve um dia em que decidiu partir uma parede e pintar um quadro, e assim o fez.

Os ateliês já não existem, os artistas vão deixando de ter dinheiro para terem um espaço inteiramente dedicado à sua produção artística, não deixaram de trabalhar, deixaram de ter espaços com os atributos necessários para o cumprimento do seu labor, os Plásticos Simala não têm água, nem luz eléctrica desde 2007, foi o Nuno que me disse.

Os ateliês já não existem, os artistas já não manufacturam, mandam fazer, foi o Cennini que me disse, um dia, em voz alta gritou, tragam uma mesa, ouvi-o, puxei uma cadeira, agarrei num livro, li três páginas, abri o computador, planifiquei uma peça, telefonei ao senhor Jorge e, na semana passada, fui buscar a minha última escultura.

As fábricas estão fechadas. Em 2012, só em Portugal, mais de 5 mil empresas abriram falência. Quantos destes espaços foram deixados ao abandono.

As fábricas estão fechadas. O espaço natural foi gradualmente sendo substituído por espaço edificado, que por sua vez, foi sendo fechado e desumanizado.

As fábricas estão fechadas. A natureza vai lentamente reconquistando o que era seu e os materiais, deixados à sua sorte, regressam à condição de matéria transformável.

As salas de exposição estão vazias, à espera que as obras cheguem, deixando os ateliês vazios.

As salas de exposições estão vazias, na esperança que alguém as habite. Aliás, o mesmo acontece com as fábricas.

As salas de exposições estão vazias, as fábricas estão fechadas e os ateliês já não existem, nem sempre por esta ordem.

nsv – outubro, 2012