Liberdade


“É mais difícil honrar a memória dos anónimos, do sem nome do que a memória dos famosos.”

Walter Benjamin

Liberdade

Intervenção de rua na fachada da sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra pelo artista plástico Pedro Pousada, promovida pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.
Produção de um painel de grandes dimensões que cobrirá toda a fachada tomando a ideia de “Liberdade” como ponto de partida e slogan, assumindo a dimensão urbana da intervenção.
A inauguração, acontecendo na noite de 24 de Abril, será evocação da Liberdade enquanto desejo no limiar de se cumprir.

A Memória dos Anónimos:

“O que me custou mais da vida clandestina foi separar-me do meu filhito, era muito pequeno quando o deixei com os meus sogros e quando o voltei a ver era um homem feito, nunca me perdoou, damo-nos mal, ele comigo, mas agora tenho o meu neto.”

“Era já noite, as máquinas da tipografia tinham terminado, estávamos a por tudo em maços, era propaganda do MUD, sai, senti passos, corri, corri tanto que parecia ter vencido mas tropecei e quando me levantei tinha uma pistola apontada à cabeça Fui preso, bateram-me, muito, acusavam-me de ser comunista, e eu, que nem sabia o que isso era, decidi nesse mesma dia saber o que era um comunista. E agora aqui estou eu na paragem do 31, o autocarro não chega, é sempre a mesma coisa…E estas pessoas não sabem que um dia lutei por elas, quando elas não tinham nascido e eu não sabia o que era a luta até me ameaçarem matar por andar com uns papéis, já não me recordo se cheguei a ler o manifesto, mas estava contra a fome, a miséria em que vivíamos.”

“Nasci em 1968, a minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos, tive que me virar, fui viver com a minha avó, na Madeira, ela vivia num aldeia, era tudo pobre, não havia electricidade, bebia-se a água que descia das levadas, ela tinha uma vaca e o leite que dava eram o nosso sustento, quatro contos, ela sofrera uma trombose e não mexia uma das pernas, encostava-se muito direitinha à vaca e mugia-a, era eu que levava o leite, às quatro da manhã, no meio da escuridão, por aqueles caminhos, vivi dezasseis anos naquela ilha, e foi aquela vaca que me pagou os estudos até à quarta-classe e nos sustentou, agora estou aqui, nesta oficina, a mudar pneus, ganho quinhentos euros e o patrão já avisou que não vai haver aumentos.”

“Comecei a trabalhar aos seis anitos, na apanha da azeitona ou a ceifar no campo, era o que calhava, saia de casa ainda era noite, e percorríamos muitos quilómetros até chegarmos ao lugar da jorna, era pequenita ficava atrás dos mais velhos a respigar, punha-mos sacas de farinha à volta da nossa roupa para a humidade do campo não nos encharcar mas mesmo assim ficávamos todas molhadas, os pés empapados, era um frio que nos amargurava. À noite punham-nos compressas de mostarda para limparmos os pulmões, não fossemos apanhar uma pneumonia, e tantos apanharam. Subíamos às árvores e puxávamos as azeitonas e as mãos ficavam cheias de feridas, em carne viva, doía tanto e mesmo assim tínhamos que continuar; havia fome e os nossos pais com vergonha diziam para irmos pedir um pouco de pão e uma medida de azeite aos patrões, os celeiros estavam cheios, mas os feitores diziam que estava tudo fechado e que os patrões estavam para o Estoril, e eles não podiam abrir sem autorização, o meu pai arranjou maneira que todos fizéssemos a quarta classe, vestíamos roupas de adulto, coisas usadas e lá íamos, para andarmos calçados o meu pai sacrificou-se e durante anos usava os mesmos sapatos, para segurar a sola enrolava arames que arranjava, muitos anos usou aqueles sapatos, tive um irmãozito que morreu, foi um acidente, a minha mãe andava a caiar e ele bebeu do jarro onde estava a cal, queimou-se todo por dentro, pensou que era leite, era a fome, tenho uma filha que andou metida na droga mas agora já se endireitou, foi duro. Queremos dar aos nossos filhos aquilo que não tivemos e depois parece que corre tudo mal.”

“Eu, quando me falam que no outro tempo é que era bom, digo, qual tempo? Eu só vi miséria, as pessoas sofriam de fome e tinha que se calar, ai delas se na mercearia da aldeia se punham a barafustar com o preço do pão, eram logo denunciadas pelo dono da venda que era um bufo, era só salamaleques para os donos da terra e para os pobres era só desprezo; tive que me por dali para fora, fui, para França, e regressei por causa dos filhos, para não crescerem num país que não o meu, mas estou arrependido, isto mudou pouco, eles andam outra vez a baralhar as cartas; sabe que a primeira vez que usei uns sapatos foi quando cheguei a França? Era como cair noutro planeta, a vida era diferente em tudo, a forma como as pessoas nos tratavam, o trabalho, a cultura, a comida. Ali fui finalmente feliz.”

“Quando acabou a guerra descemos para a baixa, era uma alegria contagiante, havia bandeiras dos países aliados menos da Rússia, e volta e meia alguém gritava “Viva o Rossio!” Então todos aclamavam o Rossio, e a polícia começava logo a dispersar-nos.”

“Eu tenho doze irmãos, comemos seis de cada vez de uma grande panela de esparguete, às seis levanto-me para ir trabalhar naquela serração ao pé do lavadouro público, envernizo as cadeiras com uma pistola de tinta, às nove horas descarrego para o liceu, estou a fazer o décimo, às seis regresso e fico até às dez no trabalho, quando chego a casa ainda espreito os livros mas é difícil, o que vale é que tenho boa memória e ouço os professores, quero tirar um curso de contabilidade, agora que estamos na Europa parece que tem futuro.”

“Quando foi o vinte e cinco de Abril, estava ali para os lados da Alameda, a pintar um apartamento, já há muito tempo que estava desempregado, não me davam trabalho por ser comunista, e um amigo arranjara-me um trabalhito, ouvi os carros blindados, assomei-me à varanda, gritavam que era a revolução, que o Caetano estava preso no Carmo, nem podia acreditar, desci a correr, juntei-me aos moços e às moças, foi o momento mais feliz da minha vida, esse e o dia em que cheguei à União Soviética.”

“Fui expulso das letras em Lisboa por actividades subversivas, tive que acabar o curso em Coimbra, chamaram-me para a tropa, fui colocado num batalhão disciplinar, enviaram-me para a Guiné, fazia parte da logística que apoiava os tipos que estavam nas bases mais isoladas, assisti a casos de loucura, meses naquele sítio, o desespero era imenso, vi gigantes a chorarem como crianças.”

“ Uma vez o PAIGC fez-nos uma emboscada, sabe com quê? Vespas, puseram um ninho escondido numa árvore onde sabiam que íamos parar para arranjar sombra, elas estavam zaranzas da mudança e quando nos apanharam ali, aquela malta toda a fazer ruído, o cheiro, sei lá, cismaram em cima de nós, fiquei doente de tanta picada, ainda hoje tremo todo quando me lembro. Não gastaram uma bala e arrumaram-nos. Nessa altura já tinha mulher e filho, éramos jornaleiros, muita fominha passamos, ainda pensei dar o salto para França, mas tive medo, oxalá não tivesse tido.”

“Lembra-se daquele filme em que as tropas portuguesas atravessam a baia de Luanda, todos perfilados? Eu estava lá, tínhamos acabado de sair do barco, estávamos exaustos, os meus homens tinham passado a viagem a vomitar, nunca tinham andado de barco, pois os filhos da mãe ainda nos obrigaram a percorrer aqueles quilómetros todos. Foi uma estafa e na primeira semana perdi logo cinco dos meus homens, eles iam no jipe da frente e pisaram uma mina, foi perto de Luanda, dois morreram logo ali e os outros ficaram aos bocados; e dias depois tivemos uma emboscada, outros tantos caídos, comecei a fazer contas, defeito de ser bancário, e cheguei à conclusão que não chegava ao fim do mês. Sabe que nome o africano dá, lá na picada, ao gafanhoto? Camarão voador. Engraçado, não é? Tantas coisas que lhe podia contar. Fartei-me de matar, o que é que julga? Se você lá estivesse não fazia o mesmo? Julga que eu queria ir para Angola, eles perguntaram-me? Sabe lá o nojo que aquilo foi, então no Norte quando chegámos era só gente morta, tudo, homens, mulheres e crianças, a própria criadagem tinha-os cortado aos bocados, e a retaliação foi enorme, lembro-me numa quinta os carterpillars a empurrarem pilhas e pilhas de africanos mortos para dentro de valas, se eles mataram muitos, nós batemos recordes, e não era só a tropa, eram os fazendeiros, os de lá, não deixavam escapar um negro que fosse, já pensou nisto? Eu que vinha de Lisboa, nunca tinha feito mal a uma mosca e agora estava ali a dar cabo de pessoas como quem come castanhas, está a ver era como aquelas sacas ali, os corpos chegavam ao tecto deste armazém, e ainda havia vivos, eles gemiam e diziam, ó branco ajuda-me, e nós daqui dizíamos, onde é que estás? Acena, e eles, coitados mexiam os deditos, e nós pumba, um tiro e eles lá ficavam, como os outros; chegou uma altura que já não queria saber, uma vez cheguei à base tão exausto que adormeci ao lado dos cadáveres dos meus camaradas. E aquele mato cerrado que parecia noite e ainda o dia ia alto. Só verde de todos os feitios, em dez passos uma pessoa já não sabia voltar para trás…e eu que era de Lisboa.”

“A primeira vez que prenderam o meu irmão foi na Régua, em 1936, ele já era engenheiro, começara a guerra em Espanha e ele lá no café botou um discurso contra a ditadura, contra os golpistas e que era preciso ajudar a República, falou da injustiça, da falta de liberdade, parece que as pessoas aplaudiram e foi levado em ombros mas depois foi preso; uma vez a Pide veio buscá-lo aqui a esta casa, ele estava lá em cima no tanque das tangerineiras, com as filhas a refrescarem-se do calor, a Pide algemou-o ali à frente delas, levaram-nos para o Porto e esteve incomunicável durante muito tempo, não sabíamos se estava vivo ou morto. Bateram-lhe muito, eu sei que lhe bateram, vi-o no seu rosto. Ele não chegou a ver o 25 de Abril, morreu novo, um cancro, foi do sofrimento, das humilhações; como ele teria gostado de viver esses tempos…”

“Quando era moça pequena lembro-me de ver a GNR a escoltar um homem que fora apanhado a tirar bolotas num terreno do morgado lá da terra, obrigaram-no a carregar o saco até ao posto; parece que quando lá chegou ainda lhe bateram. Bolotas, já viu? Para engordar um porquito com que governava a sua vida e a dos seus…”

 

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Exposição Liberdade, Intervenção na fachada do Círculo Sede

 

Exposição Liberdade, Intervenção na fachada do Círculo Sede

 

Exposição Liberdade, Intervenção na fachada do Círculo Sede