Ciclo Santa Cruz


Aqui queremos falar da “arquitectura interna” de dois dispositivos figurativos e das relações mutuamente inclusivas produzidas por uma empiria da recepção em que a cultura de massas, a auto-reflexividade da arte avançada, a convencionalização do papel moeda, a serialização das imagens secundárias, a colonização capitalista do estético e a institucionalização do transgressivo se constituíram como espaços da teoria em torno destes objectos. Omar Calabrese escreve no ensaio intitulado A intertextualidade em pintura, uma leitura dos embaixadores de Holbein que “quanto mais se busca um efeito de verosimilhança, mais se deve recorrer a um máximo de artifício”. A intensificação normativa explícita na linguagem fotojornalística do Guerrilero Heroico (1960), a consciência de um fora de campo, a preparação intuitiva e “oportunista” do instante (o momento em que Che se desagrega da multidão naquele dia de Março de 1960 e se torna um alvo fotográfico), a mise en scéne de uma técnica compositiva que “esconde o conflito” entre “a profundidade” da fotografia, o ”espaço mimético”, e a “superfície” da fotografia, “o espaço da actividade” fotográfica; é toda essa materialidade sensorial própria do acto de fotografar que qualifica o problema filosófico da imagem de Korda: o uso de uma máquina estrutural para construir a memória de uma semelhança implica uma discussão sobre o verdadeiro e o idêntico; uma discussão em que a condição intertextual da “profundidade” da imagem prevalece sobre a condição estática da “superfície” da imagem.

O exercício de estranhamento perceptivo de Rodrigo, um Che circunscrito a um óculo e materializado por uma prolongada colecção de tampas de garrafa, como que vem reiterar essa dupla natureza de superfície e profundidade, de aparência e de ambiguidade do signo ícónico. A fotografia de Korda é inseparável de um conflito que se produz em torno do estatuto do indivíduo concreto e outrora vivo quando este se transforma numa “superfície”, quando a sua actualidade se converte num recipiente simbólico onde, como neste caso, mito e radicalidade chique ocultam na abstracção do rebelde romântico, o pensamento anti-imperialista de um marxista latino-americano, de um indivíduo (ainda incómodo para o status quo do Ocidente contemporâneo) que invertendo os termos do herói trágico e isolado conseguiu viver a vida que desejou viver, conseguiu ser a humanidade que quis afirmar e viveu o sobressalto revolucionário da humanidade dos dominados do Séc. XX. A exaltação dessa imagem como um texto visual escrito a mil mãos começa no ano da morte de Che Guevara. Existe, aliás, uma complicada genealogia de agentes da mediatização deste cliché de Korda. Una cuba libre por favor, ingressa na expansão dessa série histórica e interpretativa do Guerrilero Heroico (1960). Rodrigo Oliveira produziu um objecto intersistémico, (uma obra em contacto com o poder generativo de outras obras e o arbítrio de outros discursos), recorrendo à história da arte, à cultura pictórica do retrato (onde o tactilidade da arte infantil e a faktura sofisticada jogam às escondidas), à modernidade pós-impressionista e aos jogos de linguagem visual associados às pesquisas da óptica e às terapêuticas da percepção.

Este objecto argumenta contra o isolamento a que o campo artístico continua a ser submetido no mundo das manifestações políticas e das estratégias de alteridade. A arte já não procura o lugar da transformação política como seu lugar de transformação mas procura que a sua necessidade operativa de se renovar não seja transformado no espectáculo da liberdade. O poder deste símbolo colectivo cuja chave interpretativa possui diferentes sincronias, todas elas verdadeiras para a imagem mas apenas algumas para o sujeito observado, estimula que em Una Cuba Libre por favor, o personagem “Che” seja presentificado como um estranho florilégio onde um protótipo (um Che único, irrepetível, uma história que já não pode voltar a ser senão como simulacro) converge numa repetição (o Che como ideia como ideia).

Pedro Pousada

Rodrigo Oliveira | Una Cuba libre por favor #2, 2010 | Tampas de diferentes cores e dimensões coladas com resina epoxy crystal em madeira pintada | 200 cm de diâmetro

Rodrigo Oliveira | Una Cuba libre por favor #2, 2010 | Tampas de diferentes cores e dimensões coladas com resina epoxy crystal em madeira pintada | 200 cm de diâmetro