Ciclo Santa Cruz


“A arte ocupa sempre o lugar do sagrado”, assim respondeu Alberto Carneiro ao convite de Carlos Antunes para ocupar a cabeceira da capela secularizada de Santa Cruz, em Coimbra, com uma escultura em madeira de ocomé que corporiza um haiku.

Haiku é uma forma concisa de poesia japonesa caracterizada pela justaposição de imagens ou ideias, e que se filia numa matriz de pensamento budista. Na filosofia budista, cada elemento do universo, em qualquer nível, está intimamente ligado aos outros por relações internas, assim rejeitando a divisão entre mente e matéria, sujeito e objecto no que diz respeito à constituição do cosmos. Significa que a consciência sobre o mundo e sobre as coisas que nele se encontram, não está acima nem abaixo do terreno, nem pode ser reduzida a qualquer coisa objectiva. Passa antes pela existência concreta, pela ligação do ser ao seu terreno, pela força telúrica exercida sobre o ser humano – algo que a escultura “Sobre um haiku de Bashô escrito em Ise” (1995-2003) corporaliza. Constituída por elementos em madeira articulados, ela eleva-se do chão até 2,84m de altura, de modo fluído, não para se desprender do solo, mas para evocar uma ligação entre o etéreo e o material.

Então, a que sagrado se refere o escultor? O sagrado tem acepções diferentes na filosofia ocidental (com base numa cultura cristã) e a filosofia oriental (com base no budismo). Enquanto o pensamento ocidental sobre a existência é determinado pela ideia do ser, o pensamento oriental é guiado pela ideia do nada ou vazio, noções sem conotação negativa para o budismo. Pelo contrário, as noções de nada ou vazio, significam a existência em potência, a possibilidade de vir a ser. Espaço vazio que pode coincidir com a morte ou o niilismo, mas também com o recomeço e a origem do sentido – força que o escultor eleva à dimensão do sagrado. Sagrada é a vida, a capacidade de produzir representação e através dela evocar o que está para além da matéria física e factual. Só através da representação se ultrapassa a finitude do ser humano, o seu ser tempo e lugar. É precisamente nesta constatação decepcionante da incompletude, da finitude humana, que radica o nascimento do gesto criador. Neste, e para Alberto Carneiro em particular, o corpo como fonte e ferramenta de produção do conhecimento, oferecendo a consciência inexorável de tempo e lugar, tem uma parte actuante na formulação da representação. Através da escultura-haiku, e do seu corpo, somos levados a percorrer e fechar um ciclo, indo do subsolo à superfície do terreno, deste ao tronco da árvore, do extremo da copa ao ar, e daqui, novamente, em queda, ao leito original.

Sara Antónia Matos

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Alberto Carneiro | Sobre um haiku de Bashô escrito em Ise, 1995–2003 | Madeira de ocomé | 284 × 104 × 42 cm | Instalação da peça no Café Santa Cruz

 

 

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Folha de Sala da Exposição