Este Lugar Lembra-te
Algum Sítio?
«O espaço é, em essência, aquilo para o qual se criou lugar». Esta afirmação de Martin Heidegger é aqui entendida como análoga ao Lugar — que queremos realçar/questionar. Um lugar disponível e de acesso: dotado de identidade, referente e sentido. Um lugar que se torna existente pela presença do indivíduo e do significado que ele lhe atribui, ganhando assim identidade, relação e historicidade.
Um lugar no qual se imprime um grau de afetividade resultante de vivências que potenciam e permitem criar uma marca indelével, memorável e histórica, de reconhecimento e de valor. Um lugar — ou sítio? — cujo significado é oferecido por quem o pratica, habita, usa. Contendo propriedades existenciais — sociológicas, antropológicas, relacionais e participativas — e assumindo uma noção de experiência pela vivência e alteridade que a sociedade, independentemente do local geográfico, produz de forma coletiva, relacional, interdependente, partilhada e permutada.
O lugar está onde o encontramos, ou melhor, onde o ativamos, como nos disse Anne Cauquelin. E é também ela que nos fala em lugar incorpóreo, que ganha corpo com a nossa presença e ativação. Então, de incorpóreo que era, ele torna-se corpo, precisamente pelo rendez-vous, e assim o vazio é preenchido por permitir acesso: encontro.
Desta forma, o espaço-vazio torna-se lugar, pois perde a sua ilimitação.[1] É desta mistura que poderemos pensar/situar o espaço-lugar em sítio. A autora traz ao pensamento questões em torno do espaço-lugar substituindo-os pelo «sítio»; um sítio específico. Visto e entendido desta maneira, o Lugar dá lugar ao Sítio no momento em que o homem, o habitante, o indivíduo lhe concede existência e lhe implementa uma ação, uma marca — o situa. «O lugar então, o sítio, não é finito, é um devir», afirma Anne Cauquelin.
Tratar-se-á, então, de encarar o sítio (enquanto mundo) e não mais o lugar (enquanto espaço). Um sítio nem local nem central: incorpóreo. Insubstancial. Que resulte de uma ação e receção. Tal como uma obra de arte é feita para alguém a rececionar ou relacionar; experienciar. Pensemos assim: o CAPC tornou-se num lugar (não que não o seja em outros momentos), motivado pelas obras aqui expostas que permitiram o acesso, o uso e a presença do público. Servimo-nos deste lugar e com isso situamo-lo.
O estado da arte e a arquitetura tendem a cruzar-se e a coabitar, a fundir-se — nem sempre numa relação fácil —, uma vez que ambas as disciplinas têm vindo a questionar-se (desde, pelo menos, o século passado) de forma mútua, possibilitando assim a criação de campos híbridos, desde logo pelo interesse que artistas e arquitetos partilham pelo espaço, lugar, sítio real, precisamente aquele onde a presença se faz sentir. Do Corpo. Do Homem. Da Vida. Neste contexto, a seleção destes artistas, e respetivas obras, aponta para estas questões e indica caminhos e/ou possibilidades distintas na forma como estes termos se relacionam ou diferenciam; se aproximam ou afastam; se questionam ou afirmam — nas mais variadas formas, processos criativos, construtivos e investigacionais — de diferentes práticas artísticas, que passam pela escultura (Ana Bezelga, construída para este projeto; Carlos Nogueira; Diogo Pimentão; José Bechara; Nuno Sousa Vieira), vídeo (Carlos Bunga e Fernanda Fragateiro), objeto (Fernanda Fragateiro) e fotografia (Edgar Martins e Inês d’Orey). E ainda, por uma intervenção concebida por Nuno Sousa Vieira para um espaço exterior e adjacente ao CAAA (Centro Para os Assuntos da Arte e Arquitectura — onde este projeto itinerante se iniciou), que, não tendo sido feita especificamente para o CAPC, irá ocupar-lhe aqui um espaço exterior, tal qual a essência da obra exige.
Se teórica e tendencialmente o artista contemporâneo tende a conceber e a criar obras tridimensionais e trabalha/investiga in situ, analisando as condições básicas do lugar (contexto/ambiente, utilizador/habitante/recetor, escala), e se a obra pretende dirigir-se às pessoas que frequentam esse local, então o artista deve ter um alargado leque de processos e preocupações que podem abranger disciplinas como a Arquitetura, a Sociologia ou a Antropologia, tendo, assim, um papel cada vez mais transdisciplinar e multifuncional: aproximando a sua atenção ao processo investigativo de construção e à experiência/vivência do espectador.
É desta forma que o artista (e o arquiteto) deverá abordar a sua interferência no lugar que será transformado em sítio. Um espaço-real-geográfico-específico. E mais do que entender a paisagem urbanística ou periférica e o seu enquadramento, terá que ter em conta quem lá viveu, vive e viverá.
Tal como a tensão e o jogo existente entre a vida e a arte, a arte e a arquitetura e o estético — seja ele o visual ou o relacional —, quisemos aqui lançar um outro (jogo) entre o lugar e o sítio. Estes artistas, cada um à sua maneira, oferecem um diálogo interessante com qualquer um dos jogos.
Os limites, ou as fronteiras, entre a arte e a arquitetura começaram a desfazer-se consoante ambas se interessaram na relação entre a arte e o homem e o contexto, ambiente e natureza do lugar. Do sítio.
Miguel Sousa Ribeiro
[1] Anne Cauquelin (2005), «Sítio, Lugar e Mundo», in Gabriela Vaz Pinheiro (org.), Curadoria do Local, Torres Vedras, Transforma AC.