Ciclo Santa Cruz


Uma proposição inacabada

Começo pelo que está por detrás, por cima e por baixo desta obra de José Pedro Croft: a parede do café de Santa Cruz, um fragmento da parede Universal inventada pelo homem para dar finitude ao que é extenso, para desenraizar o informe, o desconexo. Consubstanciam-se nas suas superfícies as nossas inseguranças, o nosso medo do anonimato, da falta de escala e de horizonte; as paredes (agora falo no plural porque adiciono todas as que fizeram parte das formas criadas por José Pedro Croft) nunca descansaram na nossa luta por uma narrativa que nos dê fôlego posicional, que conte a nossa história: frescos, ornamentos, molduras, urnas, cavidades, nichos, reentrâncias, passagens secretas, clichés, retratos de família, mitos, desobediências, iconoclastias, autógrafos, múltiplos, impactos de balas, fogo, gordura, vísceras, vida…tudo se espalha nas encostas erectas desse músculo; anfitrião das nossas perversões, da impossibilidade de harmonizar o que queremos possuir do mundo, deste mundo belo e estúpido. Tudo isto se denota e condensa no objecto pós-humanista com que Croft confronta a mundanidade daquele parede reformada da vida sagrada. A arte não nos liberta, nem nos transforma, pois viemos tarde demais (e ela cedo demais); os nossos códigos não se ajustam, o verbo não resolve a imagem e ela não lhe obedece mas se ela não nos vê ela guarda em si, em potencia, a expectativa de que há mais no mundo do que as redundâncias de um lugar burguês ou a nostalgia de uma unidade integral dos sujeitos numa ordem milenar. O mundo de Croft, um mundo de montagens, sobreposições, assimetrias, relações espaciais complexas, de jogos formais (e intertextuais) onde se cruzam diferentes materiais e modos de fazer, esse mundo não nos promete a reconciliação da estética e da experiência mas alimenta o desejo de prolongarmos a admiração comovida (estética) pelo que há de selvagem e inesperado nas saliências da ordem, da boa forma. Obriga-nos a pensar que há uma parte do visível que não podemos tocar, uma parte do espaço a que não chegaremos, e que o quotidiano, perecível e arquivável, contem-nos mais do que é contido em nós…podemos ver projectado nele o nosso reflexo, a nossa aparência mas não estamos lá, ele existe apesar de nós, ele existe sem nós. E revertendo especificamente para a obra que aqui se expõe e para a auto-referencialidade, para a desadaptação em relação ao reconhecível que a definem podemos afirmar que Croft interrompe a passividade e o aborrecimento das coisas humanas serem úteis e fazerem sentido. E essa interrupção não só é uma provocação (e por isso um acto ético) mas uma necessidade para que se identifique o belo verdadeiro (esta obra) do belo falso.

Pedro Pousada, Julho 2015

José Pedro Croft | Sem Título, 2009 | Ferro zincado e tinta de esmalte | 315 x 167 x 9 cm | Cortesia Galeria SETE, Coimbra | Instalação da obra no Café Santa Cruz

José Pedro Croft | Sem Título, 2009 | Ferro zincado e tinta de esmalte | 315 x 167 x 9 cm | Cortesia Galeria SETE, Coimbra | Instalação da obra no Café Santa Cruz

 

Território e Acção

Inscreve-se este novo ciclo no programa de estratégias que se endereçam à sociedade civil, que passam por posicionar algumas das actividades do CAPC em lugares da cidade onde haja uma maior circulação demográfica; pretende-se especificamente captar a atenção daqueles que não frequentam habitualmente o CAPC ou sequer conhecem o seu papel na produção e divulgação da produção artística contemporânea e desse modo socializar a mais-valia artística e simbólica que se concretiza nos diferentes espaços do CAPC (CAPC-Sereia, CAPC-Sede). De espaço cultural expectante que aguarda os seus espectadores, os seus visitantes, de espaço de representação do campo artístico contemporâneo o CAPC assumiria um contrato social com a cidadania anónima de Coimbra, realizaria uma migração dos seus conteúdos para o círculo da Civita Augescens, isto é para o interior dinâmico de Coimbra, para a sua capacidade de recepção e acolhimento dos outros, para a cultura da plurietnicidade e da supranacionalidade que definem o esforço desta urbe em se afastar do declínio demográfico e económico.

É o CAPC a descer à cidade, inquirindo e desconcertando os cidadãos, mobilizando o quotidiano, promovendo a capacidade de recepção crítica. O ciclo geral Território e acção será constituído por quatro ciclos: Santa Cruz, Espelho, Linha defensiva do Mondego e Link.

Santa Cruz

No lugar do altar, na “cabeça de Cristo”, organizar-se-ão uma série de iniciativas artísticas explorando critica e reflexivamente os protocolos da representação numa sociedade ela própria profundamente iconocrata e marcada por processos de mediação distrativos, escapistas e de crescente ambiguidade semântica.

Num lugar que numa primeira fase possuía um posicionamento monossémico e prescritivo, onde se ancorava a liturgia do divino, os sons, as texturas, os odores, o impacto visual desses momentos, e que pelos percalços, inibições e ansiedades da história grande se foi acomodando a novas funções de que o Café inclusivo, plural, tertualiano de Santa cruz é a mais recente; num lugar com este “excesso de consciência histórica”, o CAPC propõe-se ensaiar um diálogo com a cidade em que vive e fá-lo através do problema artístico (o que é a arte? quando há arte?), problema que nos ùltimos cinquenta anos tem vindo a debater, a tentar clarificar mas também a indeterminar ; a atenção inquiridora, proponente do CAPC perante este problema expressa-se aqui, neste momento inicial, tanto na sua condição de experiência, de algo que é extrínseco, que é da ordem do sujeito que observa, que convive, como na sua condição de forma significante, de obra.

Esta iniciativa do CAPC agrega-se a um tema, os protocolos da representação, que persiste e apura-se no objecto artístico contemporâneo com outros desenlaces práticos.

Com efeito não são só audíveis mas actuantes na actualidade da prática artística as permutações históricas que a revolução simbólica modernista estabeleceu entre uma estética da comparação (,a dramatização narrativa do aparente, a dialéctica entre verosimilhança e artifício, entre segredo e transparência) e uma estética da comparência (do nomeado e do irrepresentável).

Ao destituir o imitatio como o único principio activo do acto de representação (de recolocação no mundo) a cultura artística do século XX, independentemente do paradigma ou periodização que se proponha, abriu para o espectador (mesmo para o mais inexperiente) novas possibilidades de negociação e de mobilização poética na sua relação com o mundo vivido. Essa Arte aproximou mesmo que residualmente o interesse humano do interesse artístico obrigando o sujeito que observa a convalescer do pathos determinista do pitoresco, do “fácil”, do “expectável”, do “semelhante”, obrigando-o para parafrasear Kant, a “audare sapare (ousar saber)”. Se conseguiu ter êxito será outra discussão.

Certo é, contudo e contraditoriamente, que quando nada é reconhecível, quando não só se prolonga o rastreio perceptivo do espectador como se desfamiliariza, se torna estranho, difícil de interpretar aquilo que se dá a ver, a Arte, (e as obras que aqui estarão expostas disso falarão), desenvolve, (aperfeiçoando, criticando, renovando os mecanismo da representação), um esforço histórico para enraizar no mesmo plano conceptual o “Nós” e o “Eles”, isto é, a correlação de forças entre um Eu (eu sou Imago, logo existo) e a diferença do Outro (a persistência de outras antropologias da identidade e da percepção e representação do mundo); a Arte treina-nos a interrogarmos o mundo fora dos nosso fins, das nossas preconcepções. E é esse esforço que aqui na cabeceira de Santa Cruz também se positiva.

Pedro Pousada e Carlos Antunes, Janeiro de 2012