MondEGO


Deixaram, abandonaram, sublinharam

Cronograma de um rio aspergido por uma navalha: nesta sala funciona, num “turning off and on”, o espírito workshop a que Ernesto de Sousa se referia a propósito do CAPC. Esse espírito funciona aqui como um livro de muitas folhas, algumas transparentes outras rasuradas e outras, ainda, reescritas; um livro que arrisca acrescentar coisas ao mundo sem lhes dar um significado doutrinário. A intersubjectividade, quatro artistas em diálogo, ergue-se, então, como uma pseudo-“gesamtkunstwerk”. Encontramos inesperadamente no “Realismo Capitalista” de um B-52, o sonho americano a bombardear Hanói, e na acumulação de sistemas abstractos do Manhattan commuter transit system presentificados nas serigrafias de Vostell o duelo transatlântico entre o pessimismo germânico e o “revivalismo withmanesco” (sic Thierry de Duve) que marcou a itinerância do grupo Fluxus. A indiferenciação social do artista: ser como todos os outros implica, ainda, e necessariamente, culpa e sonho. Armando Azevedo atomiza o nome próprio “Mondego” num sujeito que se encontra com o “absolutismo da realidade”. ”Ego” e “Monde” engomando fragmentos de incomensurabilidade tipográfica, exorcizando o conteúdo de um rio, virando-o ao contrário com o vai e vem de uma mota-balouço. “Hommage à Mondego d’aprés Promio”, a promenade ontológica proposta por Pedro Cabral Santo faz-se em torno das diferentes motricidades e inadequações da percepção.

A autenticidade da coisa-em-si, Coimbra vista do Mondego, é apenas o repertório de uma experiência diferida, incompleta, substituída pelos seus vários nomes. O sussurro de uma mancha florestal é apresentada por Alberto Carneiro como uma ondulação de matéria e energia.

Um feixe de forças tornando-se o transporte de uma sensibilidade, mas também a sua inércia, tornando-se a consciência que essa sensibilidade tem da sua separação em relação ao mundo das coisas vivas e das coisas inertes. Numa espécie de confronto e fractura entre aquele que faz e o mundo por si feito, Alberto Carneiro vem mostrar–nos como no processo de inadequação sensível se faz inscrever a permanente volatilidade e desteritorialização do mundo. Um feixe de forças, de linhas que atravessam o plano de continuidade que é a realidade, a escura realidade do mundo denunciando o improvável das realizações humanas. Dir-se-ia assim que entre o humano demasiado humano das cartografias da itinerância de Vostell e do Fluxus e a cesura entre o inumano e o humano propiciada pelo gesto de Alberto Carneiro, detectamos em Armando Azevedo a melhor das mediações ou passagens. O seu Mondego é a sublimação do si, do self, do ego, o seu reflexo, e, em simultâneo, a paisagem líquida do interior e da escuridão que só Carneiro poderia fazer sublinhar através de traços que denunciam, afinal, a região de sombras que está para lá da metrópole e dos seus circuitos, ou tão-só, nos espaços opacos que as linhas, sempre as linhas, esse apaixonante vestígio da sensibilidade e da civilização, deixaram, abandonaram, sublinharam.

Pedro Pousada & Luís Quintais, Maio de 2012

Pedro Cabral Santo | Hommage à Mondego d’aprés Promio, 2012 | Imagem projectada, 12’’

Pedro Cabral Santo | Hommage à Mondego d’aprés Promio, 2012 | Imagem projectada, 12’’

Alberto Carneiro | Os Caminhos da Floresta, 1983 | 60x84 cm | Grafite sobre papel fabriano | quarto desenho da série de sete

Alberto Carneiro | Os Caminhos da Floresta, 1983 | 60×84 cm | Grafite sobre papel fabriano | quarto desenho da série de sete

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Armando Azevedo | mondEGO, 2003 | Medidas variáveis | Colagem de jornais, mdf, espelho, malas de viagem, mota de madeira [Pormenor da obra]