Negras Paixões
Albuquerque Mendes, Alice Geirinhas, Helena Almeida, Rui Chafes, Sofia Leitão e Vasco Araújo
Negras Paixões
O CAPC propõe-nos uma dialogia intertextual em torno do negro e da paixão através de um grupo de obras de artistas portugueses contemporâneos: Albuquerque Mendes, Alice Geirinhas, Helena Almeida, Rui Chafes, Sofia Leitão e Vasco Araújo. Como uma espécie de redundância, o manto protector da opacidade material (“Negras”) e o tormento (“paixões”) falam da necessidade com que não se consegue viver, do sorriso que asfixia, do ciúme que empareda vivo. (…)
Pedro Pousada
Estrela Polar
A tradição do retrato, e mais especificamente do auto-retrato, remonta aos pintores holandeses do Renascimento. Antes de Michelangelo se auto-retratar em seu fresco da Capela Sistina, ou antes mesmo de Velásquez pôr a público o rosto do autor (As meninas), Van Eyck auto-retratou-se — “a maneira neerlandesa”, ou seja, através de reflexo e miniatura — na cena de casamento dos Arnolfini (O Matrimônio ou Os esponsais dos Arnolfini, 1434). Com esta cena magistral, Van Eyck passou de testemunha a escritor de histórias — uma social e outra religiosa, pois pela primeira vez na história, o artista tornou-se testemunha ocular perfeita, na mais verdadeira acepção da palavra. O que se sabe da Humanidade, em grande parte, deve-se através dos retratos, bem como das pinturas religiosas e das cenas mundanas.
Posso compreender os motivos que levaram ao artista Albuquerque Mendes, sendo um dos nomes portugueses surgidos nos anos setenta, a mesclar toda a tradição da pintura, do auto-retrato, dos ritos religiosos com a acção da performance. O insight do artista é ter transformado o momento de testemunha ocular perfeita do seu tempo — onde a aura tanto do objecto quanto do artista, escorria pelo ralo da história rala. Desta feita, o artista ricocheteia o chicote impiedoso da história no corpo do próprio artista que, ao parece, esqueceu-se do seu papel de Xamã. A arte, tal qual a religião onde os ritos sagrados são feitos por quem detém poderes mágicos, deve ser exercida como uma performance de transformação. (…)
Paulo Reis – Rio de Janeiro, Maio de 2002

Albuquerque Mendes | Auto Retrato de São Paulo, 2002 | acrílico e esmalte sintético sobre tela | 250 x 190 cm | Brasil – Colecção José Mário Brandão
Um cromo jornalístico ou a fragrância eléctrica da felicidade:
Dois anos antes da morte de Baudelaire, para sermos mais precisos em 1865, ano também em que termina a Guerra Civil Americana e em que a impaciente Alice se enfia num buraco atrás de um coelho, nesse ano da tripla aliança que desgraçará para sempre o Paraguai, nasce a criatura literária Calisto Elói de Barbuda, Morgado da Agra de Freimas, nasce adulta e completamente insciente destes factos que contornavam a impalpável rotundidade do mundo. Calisto obscuro mas venerando proprietário agrícola transmontano, latinista de província, extrapola-se para Lisboa como deputado, e torna-se o parlamentar Calisto, enervador dos sicofantas do constitucionalismo como Cícero o foi dos beiços déspotas de César. (…)
“A queda de um anjo” é uma das notícias da triangulação romântica camiliana (na imperdível combinação de dois homens e uma mulher ou de duas mulheres e um homem) que Alice Geirinhas nos faz redescobrir num estilo gráfico quase de assombração e estranhamente próximo das xilogravuras que adornavam a literatura do cangaço; e são estes fólios em que o grafo branco, ríspido quase calco lítico, desbasta o negrume da vida irredenta e sem selecta dos amores incompreendidos, que nos cabe relatar.
Observem como o pasmo venéreo de Henrique Pestana, afinal um mero burguês fomentado por uma fortuna facilmente delapidável, como esse pasmo se afasta da auto-confiança do conquistador Nicoláo de Mesquita gentil-homem albardado por uma genealogia fundiária que nunca o obrigará a se abrasileirar nem permitirá que emborrasque os dias num lugar mísero. (…)
Pedro Pousada

Alice Geirinhas | As Aventuras da Aristocracia Decadente e da Burguesia Ascendente, 1997 | serigrafia sobre tela | (12) 70 x 50 cm | Colecções: de Mario Cameira (1863), da artista (1865), de Manuel João Águas (1868) e de Eduardo Laranjo (1866)
Ser-se singular no plural
Nos últimos 40 anos, Helena Almeida tem desenvolvido um corpo de trabalho que começou pela exploração dos limites da pintura (das quais é exemplar a série Pintura Habitada, 1974–77), transformando ideias e experiências em imagens. Almeida combina a imagem fotográfica com a linha desenhada e a mancha pintada, em composições que investigam o espaço e que chamam a atenção do espectador para a superfície da obra.
A artista está sempre em frente à máquina fotográfica, apesar de nunca considerar os seus trabalhos auto-retratos. Assumindo posições e expressões cuidadosamente coreografadas e encenadas, Almeida descreve o seu trabalho como performances íntimas apresentadas numa sala vazia para as quais os únicos espectadores são a câmara e o seu marido. Artur Rosa desde a primeira fotografia que assumiu o papel daquele que prime o botão para capturar a imagem. Uma colaboração que sempre foi considerada não como uma intervenção criativa, mas como um seguir de direcções especificas. (…)
No seu trabalho mais recente e apresentado nesta exposição, os dois corpos voltam a encontrar-se na imagem. Mais uma vez são ligados um ao outro, mas não através de papel ou de um abraço, mas por um arame que os ata nas pernas. No vídeo da mesma série, vê-se a própria artista a enlaçar a sua perna à do seu marido. Já nas fotografias, apenas se visualiza as pernas já presas caminhando para a frente e para trás num espaço aparentemente neutro.
A performance sugerida por estas fotografias de Helena Almeida, representa uma espécie de dança de amor e de tensão entre um casal. Uma caminhada de companheirismo mas também de hostilidade, de coragem e de dor, de vida e de morte. Apesar de, como foi referido anteriormente, as obras de Helena Almeida nunca acarretarem uma carga biográfica, é difícil não especular sobre a relação entre a vida e a obra da artista. (…)
Filipa Oliveira

Helena Almeida | Sem Título, 2010 | fotografia a preto e branco | 125 x 135 cm | Cortesia Galeria Filomena Soares
Anotações sobre «Unsaid»
É o «não dito» uma das formulações do «interior»? Este será, porventura, o modo de interrogarmos o trabalho de Orla Barry e Rui Chafes. Uma escultura mobiliza a voz e os sortilégios da voz. Isto parece querer ser dito através da impossibilidade do dizer que é também a impossibilidade em se aceder ao interior.
Habitamos um outro, ou assim se nos afigura esta máquina que nos enlaça e nos conduz à inevitabilidade do interior. A voz é aqui corrente de consciência. E nada pode presumir a presença dessa voz a não ser o exercício de imersão numa psicologia profunda que o trabalho de Barry e Chafes exige. (…)
Uma obra de arte – um outro – está dentro de nós, e cada um de nós envolve-a, cerca-a, serve-lhe de limite. Uma pele cosida à «alma» que, enigmaticamente, se torna o exterior desse corpo, dessa máquina antropomórfica que detém uma voz.
Poder-se-á, aliás, dizer que todo o trabalho de Rui Chafes é uma figuração deste processo. Trata-se de um objecto que se distribui, se dispersa, se multiplica, e que, simultaneamente, assegura, através dessa dispersão, a sua coerência material e formal.
Luís Quintais
Da difícil tarefa de saber quando não é
Ainda hoje me recordo de um professor que afirmava veementemente que as cores da paixão eram cinco, todas elas contendo propriedades intrínsecas ao fogo, e em seguida enumerava-as: o índigo; o violeta; o cinábrio; o terra de Siena e o quase negro e enfocava que era um quase negro e não um negro. (…)
O Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) numa proposta denominada de Negras Paixões reconhece num texto, que traça o remoque da exposição, a possibilidade de existir uma repetição de palavras e de ideias – “uma espécie de redundância”; entre o negro (restrito à propriedade que vela, que encobre, que oculta) e a paixão (compreendida como algo que tormenta e asfixia). O CAPC ao contemplar desta maneira este dois termos propõe a possibilidade de haver uma mesma frequência, uma sintonia, e isto porque parece encontrar sintomas em comum. Esta forma de interpelação é já uma forma bastante contemporânea de assegurar e obter um vasto leque de material questionante.
Desta maneira, a proposta do CAPC, facilmente, se torna num apelo ao contemporâneo. Ao propor as ressonâncias, que evidentemente também incorpora as dissonâncias, que possam existir entre «negro» e a «paixão» cria um «já não» e um «ainda não» suficientemente susceptível de criar um rol de «citações» e de «reactualizações» que criam esta forma de entender o contemporâneo como pertencente a um lugar, a um «aqui», que é ao mesmo tempo passado e futuro.
Sofia Leitão responde a esta proposta do CAPC com um trabalho que representa um enorme aglomerado de cristais de quartzo com cerca de metro e meio de altura e quase o mesmo de largura. Esta peça elaborada com o recurso a espelhos e a lantejoulas recria uma espécie de doença muito comum neste tipo de cristais trata-se de um depósito que se forma, uma espécie de calcinação de cor negra que vai envolvendo e cobrindo o cristal desde do seu eixo e que se alastra a todos os prismas do cristal e em última instância lhe retira todo o seu brilho. Neste sentido Sofia Leitão encontrou um modo de representar a ideia do negro e da asfixia de um brilho. (…)
Rui Leitão

Sofia Leitão | Sem Título, 2011 | espuma, lantejoulas, espelho, alfinetes de aço, estrutura metálica | 140 x 130 x 90 cm | Colecção da artista
A palavra e o(s) outro(s)
Na obra de Vasco Araújo persiste uma necessidade incessante de resgatar a identidade como categoria e condição essencial da liberdade. Esta busca, conduz-nos a uma deriva traçada pela constante utilização e apropriação de textos seminais de autores de referência, mas também de textos ficcionais — que o artista encomenda a escritores — que se constituem como pano de fundo e estrutura conceptual das suas obras, independentemente dos suportes que usa, sejam estes o vídeo, a instalação ou os desenhos objectualizados. Como exemplo podemos referir algumas obras literárias e filosóficas: Hipólito de Eurípedes, para a obra Hipólito, 2003; excertos da ”Ilíada” e da “Odisseia” de Homero, para a obra Jardim, 2005; “Diálogos com Luecó” de Cesare Pavese, para a obra Eco, 2008; e mais recentemente “Devaneios de um Caminhante Solitário” de Jean Jaques Rosseau, para a obra Telos, 2011. Estes textos são parte da matéria que é trabalhada com a imagem em movimento e a voz, transformando as diversas casas do saber numa polis semântica que é a sede do pensamento do autor.
As obras escolhidas para esta exposição, “O Percurso”, 2009; “Álbum” e “Black Family”, 2008 — vídeo, escultura e desenho — têm em comum a palavra como elemento agregador da representação imagética e, deste modo, do nosso imaginário. Na obra “O Percurso” (com texto original de José Maria Vieira Mendes) assistimos a um diálogo ficcional — construído a partir de um monólogo — entre dois homens de etnia cigana, um jovem e um velho, que procuram uma terra de acolhimento. (…) Na mesma linha de pensamento, a escultura “Álbum”, uma mesa de jantar de grandes dimensões que contém treze álbuns de fotografias incrustrados, evoca uma ligação estreita e familiar, o lugar da refeição em família, mas em que cada um é representado por uma espécie de parábola despojada de imagens que em última instância residem no significado e na função que atribuímos aos objectos (a mesa como lugar de encontro e o álbum como residência da memória). (…) Mas é ainda a ausência que resta nos desenhos executados em cartão negro recortado e rasgado, da série “Black Family”, os quais encontram uma correspondência com outras séries de desenhos executadas pelo artista sob a mesma técnica, mas denotando cores e significados diferenciados como, por exemplo, White and Blue, Golden ou Pink. (…)
A ausência é aqui um sinónimo de caminho, desejo e finitude. Um imenso mapa interrompido que somente a geografia semântica da palavra pode recuperar.
João Silvério

Vasco Araújo | Álbum, 2008 | mesa em madeira, 13 álbuns de fotografia | 350 x 90 x 77 cm | Colecção Miguel Rios