Alpha Béton
Existe na secção egípcia do Museu do Louvre um pequeno modelo de uma casa de dois pisos com uma escada exterior; a legenda situa-a no Império Médio entre 2033-1710 a.C. O objecto representa uma habitação de camponeses, provavelmente prósperos dadas as suas dimensões; na mesma vitrina rodeiam-na outros modelos de casas urbanas de dois ou três pisos com varandas adossadas, torres de vigília; há dois aspectos fascinantes neste artefacto musealizado, o primeiro é o arranque tecnológico que significou a invenção da escada, que, imagino, esteve durante muito tempo para a arquitectura como a roda para o transporte; a ligação não apenas estrutural mas antropológica que a tecnologia da escadaria proporcionava entre dois topoi da ideia de ascese, de deslocação vertical: o solo e o seu claro-escuro mundano e o telhado, primeira etapa do firmamento estelar; a ideia filosófica de superação da matéria, o sacrifício do corpo, e a depuração dos vícios, do indeterminado, talvez estivesse originalmente ligada a esse dispositivo que permite o transporte vertical, uma combinação de tecnologia e metafísica. A torre de Babel, esse além que se pretende alcançar por via arquitectónica, parece ser uma enorme escada helicoidal e a relação entre pureza e altitude, entre mortalidade (o código universal, a possibilidade de comunicação, o sonho dos construtores de Babel) e eternidade (a multiplicação do código, o ruido e o silêncio, o castigo de Deus) perduram nessa metáfora espacial.
O segundo aspecto, mais catastrófico do que fascinante, será a consciência da finitude, de que tudo acaba. Algures num passado tão impossível de imaginar (com os seus odores, sons, coloquialidade, texturas idiomáticas, esquemas de pensamento) como uma realidade alternativa, aquele artefacto serviu um propósito (imitar o estar no mundo, entreter, distrair, explicar); propósito esse que agora significa apenas que no futuro o vazio que ocupamos e a que chamamos presente, o “hoje” o nosso “hoje” com uma cultura específica e uma identidade nacional, será esquecido, apagado. Mas o que tem este objecto do crescente fértil a ver com esta exposição, e com estas imagens? Provavelmente nada, sobretudo para os outros, mas ao observar as fotografias de Nuno Cera, em particular aquelas que tratam de objectos inacabados, objectos que a tecnocracia designa de infraestrutura, pensei nesse arquétipo de casa. E logo a seguir senti-me empurrado pela dimensão espectral e contraditoriamente diurna da plasticidade da fotografia de Nuno Cera e lembrei-me de uma referência peculiar que no início do seu Snows of Kilimanjaro, Ernest Hemingway,faz ao facto de “…no cume ocidental encontrar-se a carcaça seca e gelada de um leopardo. Ninguém conseguiu explicar o que é que o leopardo procurava naquela altitude.” O que queremos (e o que quer Nuno Cera) com as imagens? O mesmo que esse leopardo? Um horizonte, um algo mais? Testar a inteligibilidade e a comunicabilidade do visível? Porque continuamos a produzi-las incessantemente? Queremos compreender que a vida se faz pela sucessão da morte? Queremos reaver o perdido? Segurar instantes que os nossos corpos e o nosso mundo (objectos ou sujeitos da anotação fotográfica) não reconhecem sequer como partes de um continuum porque estão imersos e indestrutivelmente ligados a esse fluxo? Baudelaire falava a propósito da Arte (donde excluía a fotografia apesar do seu amigo Manet se socorrer abundantemente dela…) como uma mnemotecnia do belo, uma das suas funções seria relembrar continuamente aos vindouros as capacidades humanas de enfrentar (incorporar também) através do belo, a incompletude do mundo, a agressão dos fenómenos naturais e históricos, o disforme, o banal, o desamor, o infernal. A fotografia nasceu como o desejo de transformar a luz em grafo, em imagem, de transferir para uma superfície o que o olhar (ou a sua réplica mecânica) vê – e também aquilo que lá está e que não é rastreado, memorizado pelo corpo que vê. E nasceu desse desejo milenar de fazer perdurar o olhar sobre as coisas; coisas de que durante muito tempo só a palavra escrita, um recurso anti-mimético, parecia assegurar o realismo, a verosimilhança.
A casa egípcia reaparece no vídeo Espaces d’Abraxas, Le Palacio, le Théatre, L’arc, (2014) de Nuno Cera. Um objeto histórico (a fotografia como operação artística, o vídeo como uma auto-referencialidade construída a partir da hipótese documentarista) fixa como conteúdo estético um segundo objeto histórico (a arquitectura). O trágico(o desconforto da organização do vazio: a encarnação do sublime na forma arquitetónica) impõe-se no insólito (porque real, verdadeiro, usado e vivido) falanstério do Espaces d’Abraxas (1982, Noisy le Grand), somatização de acrópole com os seus pórticos, colunas morfizadas como habitações, estruturas monumentais feitas com a incongruência de um ourives. O fantasma de Charles Fourier manifesta-se num dos nomes possíveis desse megadispositivo desenhado por Ricardo Bofill: Palais. Espaces d’Abraxas é então uma outra Sarcelles, um híbrido anti-moderno, hipérbole da Strada Novissima, e que, ao contrário da fantasia fourierista, não concilia as paixões mas parece ocultá-las no isolamento, na atomização, em marés sucessivas de repetição, de fazer de novo. Kurt Schwitters dizia que o eterno era apenas aquilo que durava mais tempo e no vídeo de Nuno Cera – fragmentos de uma visita a esse espaço – a monotonia, a ausência de dissonâncias, de perturbações, o pós-humano da escala parecem acentuar essa duração. É difícil ver, ouvir como uma totalidade, como uma definição, o movimento de um cosmos – aquele palácio – onde o indiscernível, a vida dos outros, a comunidade daqueles que são vistos, e coisificados (que, para Nuno Cera, e para nós, observadores, não são interlocutores, não são realidades mas possibilidades de realidade: o adolescente encostado à janela, os adultos e crianças que passam no anfiteatro, nos pátios, as janelas preenchidas de domesticidade; a errância voyeurista chega a perpassar por alguns instantes do vídeo mas desvia-se) parecem coexistir, sem diálogo, sem reconciliação, com a entropia da necessidade social: as boas intenções e a boa forma podem correr mal, podem ser o espelho da melancolia, do néant. Mas mesmo perante esse desacerto – a obra correu mal – a identidade mais ouvida ainda é a do arquiteto, a única que cristalizou a sua subjetividade (ainda que historicamente localizada nos anos oitenta) numa forma, numa cápsula que para muitas pessoas se tornou o quotidiano premente e inescapável, a atmosfera fim de dia, a realidade piedosa do week-end seu bairro, quarteirão, comunidade.
Assim Ricardo Bofill onde o passado arquitectónico, a doxografia complicada desse passado (clássico ou moderno, clássico e moderno, tradição da tradição, tradição do novo e tradição da tradição do novo, heterodoxia, historicismo) surge como mode d’emploie, e Carlo Scarpa onde a arquitetura “reinventa a roda” a partir de identidades estabilizadas- são ambos reivindicados por Nuno Cera como espaços fotográficos; espaços- efeitos de realidade – que potenciam a realidade dos efeitos fotografáveis do construído. A fotografia funciona como um lugar – ele próprio carregado de realidade- e “rodeado de realidade por todos os lados”. Estas imagens de Nuno Cera continuam a experiência – sua, de escolher, de decidir esteticamente o que vai fazer e como o vai fazer- não a interrompem mas prolongam-na. Há uma preferência mórbida na intuição fotográfica. Ela deixa-nos ver paisagens onde pontuam construções lacónicas, interrompidas, estruturas verticais, blocos, monólitos, encarando a sua inutilidade; detalhes estereotómicos, superficies parietais aproximando-se do readymade – da serialização e do deslocamento contextual: as construções que Nuno Cera regista como imagens são colocadas fora do seu sítio, e aparecem como ensaios sobre a cópia (interpretação) do mundo (e as suas narrativas visuais, pictóricas, práticas), cópia que implica a substituição do orgânico pelo inerte, e a soberania do artifício, do falso – do que não é – perante aquilo (o site-specific) que não pode ser destituído das impurezas do lugar; porquê esta escolha temática? Porquê estas formas destituídas de um princípio e de um fim, desenraizadas situadas entre o quotidiano (a sublimação do eterno presente) e o fracasso, estas formas onde vigora a inibição e a desarmonia do absolutamente grande? A ambiguidade das fotografias de Nuno Cera é que não estamos a observer fotografia de arquitetura, não estamos no reino da traição fotogénica do aparente, da sociabilidade da obra arquitetónica. A fotografia intensifica, posiciona esteticamente o real mas esse real não essencializa (define, estipula) a condição fotográfica. A arquitetura aparece, aqui, como um medium, como uma imagem-finita, envolvida de impotência e morte, não é o enquadramento e o controle estético (ou funcionalista) do vazio mas o próprio vazio. É um antagonismo espaço-temporal, em acção, colocando-se entre o desejo- administrativo e poético- de “perfeição social” (a comunidade em autocorreção, e a fotografia, como força medusiva, petrificando o fora de campo desse desejo de superação colectiva, como oráculo de que a integridade e nitidez da juventude de todas as coisas dos edifícios, dos corpos geológicos, do que viveu, foi vivo e ainda vive, dos dias, dos nomes, se suspende numa folha de papel ) e o egotropismo da auto-perfeição (os conflitos internos da subjetividade criadora, do autor resolvem-se na produção de espaço (o quadro fotográfico, a arquitectura) para os outros: a relação intersubjetiva é hierarquizada, o autor, o magíster artífice diz: isto é bom para se ver, para se viver- mas não quer ser respondido, quer que a vida, o rumo das coisas se encadeie nesse lugar (o enquadramento na fotografia, a promenade na arquitectura), que prove que merece esse lugar, que merece essa representação do absoluto).
Pedro Pousada – Coimbra, Janeiro de 2015