O lugar desatento
A arquitectura na colecção CAPC
O lugar desatento – A arquitectura na colecção CAPC
Adolf Loos, um herói anacrónico do essencialismo baudelairiano, descrevia o arquitecto como “um pedreiro com conhecimentos de latim”. Um pedreiro humanista. O arquitecto constituía-se pela conjunção entre o saber em acto, (erguer quatro paredes e fenestrá-las) e a literacia esta por sua vez resultando do uso da língua franca de uma civilização mediterrânica já desaparecida; um quotidiano feito de lapidação e a vocalização de uma língua sem vida quotidiana; essa constituição, a do arquitecto, não era só o efeito de uma prática e de uma cultura mas possuía um carácter posicional, uma demarcação histórica e geográfica; o pedreiro era europeu. Estivesse em Yokohama ou no Rio de Janeiro aquele que no século XX se definisse como arquitecto era intrinsecamente o produto cultural da Europa, da homogeneização da diferença europeia, do classicismo, em detrimento dos artifícios e artefactos do contexto onde se inseria. O Arquitecto colonizava com o seu modo “retórico” de partir pedras. O mesmo Loos comentava com alguma malícia que Le Corbusier não falava Francês, língua novilatina, uma língua viva e sem autor original, mas Esperanto, uma língua universal, uma invenção tecnocrática ao serviço de uma utopia de coesão universal e superação das diferenças nacionais. O seu arquitecto, o de Loos, era pelo contrário exclusivista no seu antropocentrismo; usava, para esse efeito, um código dominado por poucos. A arquitectura era um saber secreto, iniciático e o artesão do espaço não entregava os seus truques de magia, o esoterismo das suas ideias mas pelo contrário dificultava o acesso ao seu uso. A presença diferida de Loos, em particular, o seu euro sincretismo, ressurge num excerto da viagem de Che Guevara e Alberto Granado pela América do Sul, quando em Machu Pichu uma criança Inca a cumprir um papel informal de guia turístico explica a excentricidade de uma parede onde se justapõe dois métodos construtivos: “deste lado (com um encaixe imperceptível e uma maior depuração dos materiais líticos) os que sabiam fazer muros, os índios” do outro lado, com uma estereotomia mais desalinhada e casuística, a parede “é dos espanhóis Eles não sabiam fazer muros.” É esta contradição que gera imagens fortes espacializando a ambiguidade, colando a hesitação ao dogma, a memória à mentira.
Os lugares enchem-se de pó – um caminho sem fim- e as épocas de arquitecturaum fim sem caminho. A arquitectura é, aliás, a inscrição de um exílio. A inscrição da forma perdida na forma utilizada; do que não se sabe se vai dar certo no dever ser. A arte é retroactiva em relação a essa forma utilizada, ela trabalha a nostalgia do inútil, o mundo em rascunho, com uma obsessão desesperada que se torna muitas vezes numa rendição niilista à impossibilidade da diferença. Ela tenta resgatar da tecnocracia do quotidiano o inútil, (o que não faz sentido, a duração do imprevisível). É a soberania do trabalho morto e anónimo mas uma soberania nómada, que complexifica e descontextualiza a sua gíria, as suas lealdades e que se coloca em fuga, quase sempre fracassada, do souvenir, do decorativo, do kitsch.
Esta exposição no CAPC explora a imersão desses dois espaços, o da forma utilizada e o da nostalgia do inútil.
Na primeira sala desenhos de Jorge Colombo. Uma recorrência. O incansável narrador (ou descritor?) de Nova Iorque Todo-o-Mundo, da cidade mais lenta e avançada do mundo, desembarcou na Paris Je t’aime/impression soleil/ minute maid. É Paris isolada em momentos termo-digitais (de cor e de luz) e remontada na imagem teórica das cidades universais; é o esforço de individuação expresso no registo da condição estética do anonimato (das pessoas que passam e são, dos edifícios fotogénicos ou sem salvação); Paris de Atget, de Bresson, de duas ou três coisas que sei dela (region parisienne par J.L-Godard), de Versalhes-Vichy, do leão de Denfert, do pére-lachaise onde dorme a conspiração cosmopolita internacional assim como jazem gloriosos os avós blanquistas do bolchevismo; a Paris intranscendente dos RER, dos black mec hip-hop das cités; a Paris que nunca se desvendará e onde também “não te safas sem umas rodas”. A Paris systéme D. Dê de desenho.
No corredor cruzam-se ensaios gráficos de Pedro Pousada sobre a paisagem não-histórica mas intensamente construída da periferia portuguesa. De um dos lados o subúrbio funciona como analogia visual do Portugal dos pequeninos. O mito metaboliza-se no carácter incontrolável da experiencia humana. A aparência que reverte destes trabalhos é que o mundo é constituído por migrações e existências fragmentadas que o convulsionam ao mesmo tempo que acentuam a sua condição de readymade social. O espaço não é isotrópico, não se deposita intacto nas mãos dos seus utilizadores mas é a sobreposição de uma não-imagem a um lugar. A segunda série de trabalhos, do outro lado da sala, combina num sentido anagramático conteúdos e materialidade que podem ser associadas à cultura arquitectónica. O desarranjo estético, a acumulação sem nexo narrativo, sem caminho nem fim, tudo remete para a espacialidade pós-fordista onde desaparece do edifício a clareza funcional, ou a solidariedade submissa da forma à função, do objecto ao contexto, o edifício desformata-se mas não cessa de existir, continuando a viver como arcaísmo, ruína, inutilidade.
Na sala seguinte uma fotografia de José Maçãs de Carvalho. Uma incaracterística casa de banho. A escala da fotografia desmaterializa-a como medium e intensifica o realismo do espaço de que se alimenta. Como os Casseurs de pierre (1849) de Courbet a fotografia de José Maçãs revela o espaço em acto, como coisa, como laconismo, como categoria do reprimido, do que não tem forma; esta imagem congela um lugar de uso numa intermitência; um exílio doméstico prolonga-se para fora dos seus limites, da sua função. Assim uma casa de banho ganha fisicalidade, vivendo noutro espaço, no espaço composto, enquadrado de uma imagem para poder separar-se das rotinas, movimentos e objectos que a identificam; e através desse estranhamento não é só a nossa ideia de pudor, de autocontrole, de inibição que se dissipa da imagem mas a força prescritiva do verosímil. Já não vemos uma casa de banho, com a sua humidade e os seus ruídos mas um antagonismo entre a realidade e o fora de campo.
Organizado num mosaico regular de fotografias 10X13 observamos o trabalho de recolha documental de Valdemar Santos a subjectivar a informalidade a continuidade entediante, afásica do abrigo. Actos de isolamento e de contingência ganham valor factográfico. Valdemar Santos coloca-nos perante a não-imagem do livre-arbítrio: o amadorismo especializado no acto construtivo não-histórico. A gratificação e o desenraizamento de fabrico humano preenchem, deformam, desligam o espaço. Nesta série, impressionante reflexo da entropia que define o reino da liberdade, a repetição e a diferença tornam-se reciprocas e existem sem força narrativa, existem apenas na sua condição expectante. Ao trabalho mecânico acrescenta-se a acção autográfica, correctiva da marca autoral, pictórica, sobrepondo e atenuando esse mundo informe. O ego que constrói revela-se um objecto impuro (uma propriedade incompleta).
CAPC, Dezembro de 2013