Vim para enterrar César



Folha de Sala


  1. A exposição de Gustavo Sumpta Vim para Enterrar César é composta por dois núcleos de obras, distribuídas pelos dois espaços do CAPC, interligados, mas a que correspondem duas tipologias de preocupações: no espaço da Sereia, encontra-se um conjunto de obras que convocam a morte e a sua representação, a guerra e disciplina, a fragilidade do corpo e a sua perfuração, a memória e a sua reapropriação. No espaço do CAPC Sede, na Rua Castro Matoso, a obra apresentada reflete sobre a memória, a sua representação e o apagamento, e, de certa forma, o movimento. A unir ambos os momentos há um foco na preocupação com o rigor e a precisão, características essenciais do trabalho de Gustavo Sumpta, quer nas obras escultóricas, quer no trabalho performativo, que também aqui é evocado.
  2. Na Sereia, encontram-se duas obras que reconhecemos como baionetas: um conjunto de sete «baionetas» alinhadas e cravadas na parede, logo na primeira sala, intitulada Os Sete Magníficos. O título é apropriado do filme homónimo de John Sturges, de 1960, western com Yul Brynner, James Coburn, Charles Bronson e Steve McQueen, um épico sobre coragem e resistência, uma ode a uma hipermasculinidade no limiar do caricato. Mas pode também remeter para a canção homónima dos The Clash, irónica no fresco da Inglaterra de Margaret Thatcher, um hino working class hero, sobre a luta diária.
  3. As «baionetas» são esculturas de bronze — são, portanto, representações — estetizadas no processo da sua reprodução numa liga nobre, ligada à tradição da escultura desde a Antiguidade. As baionetas de bronze foram moldadas a partir de uma baioneta de ferro, presente na última sala da Sereia, uma réplica (com propósitos reais e efetivamente bélicos) realizada a partir de um modelo inglês usado nas guerras peninsulares. Começamos, portanto, com esculturas de modelo que convocam a tradição neoclássica do molde a partir do real. Neste caso, no entanto, a sucessão de mediações é mais ampla, porque se inicia com uma peça «real» — no sentido em que é uma arma efetiva —, mas que é, ela mesma, uma cópia de um original previamente existente, também ele uma réplica. Num certo sentido, as esculturas são representações de representações, num circuito que inaugura a exposição como reflexão acerca dos processos representacionais, ou, por outras palavras, acerca do processo inevitável da arte de substituição de uma entidade (chamemos-lhe «corpo»), por um outro que o substitui e lhe transporta o sentido. O nome grego para este transporte de sentido é «metáfora».
  4. Na sala seguinte, coexistem duas esculturas: um suporte de pé, com função militar, moldado a partir de uma peça semelhante existente no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra, na mesma sala na qual Sumpta expôs na Bienal Anozero de 2017. Esse suporte, colocado em frente a uma janela — parecia convocar a posição de um corpo expectante — indica um ponto de observação e uma postura corporal. Essa postura pertence ao domínio da estatuária militar: alguém que observa, ou conquista, um pé colocado sobre outro corpo, seja uma altercação do terreno, ou um outro corpo humano; em qualquer dos casos, é sempre uma postura de dominação e, portanto, convertível em monumento. A outra obra é um anzol compósito, suspenso do teto como um nó de forca, à altura do corpo sacrificado. Ninguém está suspenso da sua condenação, nenhum corpo cumpre a função da escultura que convoca a captura, nem tão pouco nenhum corpo usará o suporte para o pé. Restam os seus fantasmas, a memória háptica dos corpos que aí teriam sido conquistadores ou conquistados, dominadores ou dominados.
  5. Guiados pelos fantasmas, entramos na última sala, onde duas obras se complementam. Nenhuma delas é uma representação (melhor, neste contexto, ambas o são), porque são readymades: a mesa é uma verdadeira mesa de autópsia do século XIX e a baioneta é a tal baioneta oitocentista na versão britânica, antes usada pelo exército de Wellington, força «libertadora» da invasão francesa, posteriormente copiada para uso local.
  6. Finalmente, a mesa de autópsia oitocentista. Nada há a dizer, senão convocar os fantasmas de todos os que, sem nome nem memória, aqui foram analiticamente esventrados e estudados. Os fantasmas estão vividamente presentes na morfologia da mesa anatómica, o escorrimento dos fluidos pensados e domesticados, os cheiros agora extintos, só deles restando uma memória visual projetiva por todos aqueles que, solene e tristemente, compreenderem a função de desmantelamento do corpo.
  7. Tudo aqui, portanto, convoca a fragilidade do corpo manipulado, perfurado e esventrado, sem que, no entanto, qualquer presença corporal, senão os artefactos (verdadeiros e falsos, escultóricos ou roubados ao real), aí esteja para a convocar. As peças são como que moldes fantasmáticos para corpos ausentes, proficientemente presentificados pelos espectadores, eles próprios substitutos, metáforas de vítimas.
  8. Na sede, só uma sala é ocupada, e com uma única obra. Trata-se de uma peça que sobrevive — melhor, refaz —, uma performance que Sumpta realizou num projeto da Bienal Boca intitulada Quero ver as minhas montanhas. O projeto tomava a obra homónima de Joseph Beuys como referência e pretendia referir a natureza como memória. Nessa performance duracional, Sumpta lançou, de uma janela do Centro Cultural de Belém virada para a Praça do Império, fitas de K7 VHS que ia amarrando a um arco à sua volta. Nessas K7, memórias obsoletas de um outro tempo, flutuavam fragmentos impossíveis agora de recuperar. A escultura realizada presentifica esse momento, o de uma obsolescência que assombra o presente, impossível de viver ou de recuperar. Só um vento as poderá agitar, só uma melancolia as pode fazer viver.
  9. Que importa. O corpo frágil da memória da grande glória só existe na expectativa. E o nome dessa expetativa é desconhecido, dele apenas restando o eco de uma substituição, de uma metáfora que, na erosão da sua repetição recôndita, só pode devolver-nos o halo da morte e, no melhor dos casos, da sobrevivência.
  10. E aqui estamos para enterrar César. E esperar, ironicamente, por Marco António.


— Delfim Sardo



Gustavo Sumpta nasceu em Luanda em 1970 e vive e trabalha em Lisboa. É performer, artista visual, e foi professor de Escultura e Imagem em Movimento no curso de Escultura do Ar.Co, em Lisboa, de 2008 a 2012. De entre as suas exposições individuais, constam: Sob o Signo do Pneu, na Galeria Solar, Vila do Conde (2022); Luto, na Galeria da Casa A. Molder, Lisboa (2021); e Die Zunge an den Gaumen nähen/Coser a língua ao céu-da-boca (2017), no Rosalux – The Berlin based art space, Berlim. Participou em várias exposições coletivas com: Pontas Duplas (2021), na Galeria Presença, Porto; Metal Sonante (2017), no Anozero – Bienal de Coimbra; e Um homem quando mata um homem é um assassino, quando mata mil é um acto de Fé (2009), na Bienal Gyumri, Museu Etnográfico de Gyumri, Arménia. Das suas diversas performances, destacam-se: Herdeiro Universal (2022), DAMAS, Lisboa; D.O.C. – Denominação de Origem Controlada (2021),no Festival Boca, Centro Cultural de Belém, Lisboa; Sempre-em-Pé (2020), Festival Temps d’Images, Centro Cultural das Carpintarias de São Lázaro, Lisboa; e Levantar o Mundo (2017), no Anozero – Bienal de Coimbra.



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